HERBERTO E OS
CÁLCULOS EDITORIAIS
Herberto Helder é um poeta voluntariamente retirado dos
palcos onde a “vida literária” se exibe e se representa. Não é uma regra
monástica, é uma atitude que manifesta certamente algo que é de uma ordem
pessoal, privada. Mas é ao mesmo tempo uma regra de defesa da autonomia da
obra, condição para que esta seja lida sem a interferência de quaisquer ruídos
de fundo. Uma sociologia literária empírica e imediata dá-lhe toda a razão: no
acesso e até na legitimação da obra literária acumularam-se as interferências
dos factores externos, extra-literários. Porém, o impoluto poeta Herberto
Helder foi, desde há algum tempo, atraiçoado por uma lógica editorial que apela
ao valor e ao fetichismo da mercadoria. E isso verificou-se com toda a
evidência no ano passado, quando se assistiu a uma corrida pouco edificante para
a aquisição de Servidões. Numa
semana, venderam-se cinco mil exemplares, como se se tratasse de um produto de
especulação financeira. Os livros de Herberto Helder entravam assim numa bolsa
de valores que nada tem a ver com as leis da consagração de um escritor. O
anúncio de que não haverá uma segunda edição justificam a corrida, se
aceitarmos que o produto ganhou valor de provinciano prestígio e de falsa
raridade. E assim se criou, de maneira artificial e que nenhuma sociologia da
literatura conseguirá explicar, a ideia de que a oferta era escassa para tanta
procura. O resultado é conhecido: muitos leitores de poesia, e do Herberto Helder
em particular (aqueles que justificariam todos os cuidados especiais na edição
e comercialização do livro) ficaram arredados da corrida. De repente, a única
justificação para o livro não ter reedições ou não ter uma tiragem que
satisfizesse a procura (uma justificação que só pode ser a preservação da
autonomia literária), ruía por todos os lados e o livro entrava num tráfico
comercial que se assemelhava ao de um produto financeiramente rentável. A acção
repete-se agora de maneira ainda mais sofisticada: anuncia-se o livro só com
uma semana de antecedência, aparentemente para evitar a corrida especulativa.
Mas, ao mesmo tempo, escolhe-se o momento da Feira do Livro, que é quando a
editora mais vende directamente ao público. Tudo está preparado para que o editor
venda nas suas próprias redes de livrarias e através dos seus canais de
comercialização, de modo a que o livro nem chegue – ou apenas em número
reduzido - às pequenas livrarias. Além disso, contra tudo aquilo a que o autor
nos habituou, explora-se da maneira mais despudorada uma relação fetichista: o
livro traz um CD (espantemo-nos), onde o ouvimos a ler cinco poemas; tem uma
sobrecapa de papel luxuoso a imitar papel de embrulho onde se reproduz a
assinatura e a caligrafia do poeta. Diz uma “Nota do Editor”: “Herberto Helder
tem por hábito encadernar os seus livros com papel de embrulho castanho,
escrevendo por fora com caneta de feltro vermelha o título e o nome do autor. A
sobrecapa da presente edição evoca essse hábito, reproduzindo a sua caligrafia”.
Correi, senhores, antes que esgotem as metonímias do corpo do poeta, impressas em
capa dura e papel de embrulho enriquecido. E já que era alta a maré de
generosidade metonímica porque é que não acrescentaram à embalagem tão
demagogicamente volumosa, como gostam os coleccionadores de literatura-bibelot,
um pêlo púbico do autor, em homenagem ao “Anjo Príapo” e à “Nossa Senhora Côna”
que são invocados no primeiro poema? Que sabemos nós da participação do autor
neste processo? Nada que nos permita dizer mais do que isto: o poeta impoluto
fica perigosamente exposto.
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