sexta-feira, maio 09, 2014

Ouvindo Louis Armstrong


Ouvimos uma voz rouquenha e latejada
E sentimos uma paisagem de outros dias
Que se aninha no nosso quarto:
Os cantores de blues viajam em comboios
Que tisnam a pradaria.

Nalgum vagão, vai um cacho de vozes.
Essas vozes que viram linchamentos no Sul,
Emboscadas no delta, assaltam-nos
Na penumbra do bar, alta noite.

Que tantas coisas habitem uma voz:
Comboios. Fumo. Uma canção que varre o vento
E uma mulher que não espera ninguém nas gares,
                                                                          É um milagre.

Que tantos sonhos evoque:
Uma cenografia de anos turbulentos
Com guaridas de tafuis e rufiões,
O sonoro funeral de um trompetista,
Uma esquina de Harlem tocada de lua
Ou o beco onde os rapazes
Põem os pés a bailar ao som dos eléctricos,
                                                             É um acto de fé.

Num esconso do quarto, gira a lua negra
Do disco, e obscuras asas abanam os recantos.

- Juan Manuel Roca
(tradução de Nuno Júdice)
in Os cinco enterros de Pessoa, Glaciar

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