Um mandamento lavrado sobre as cinzas do Holocausto
impôs um “dever de memória”. O seu contraponto, o seu pólo dialéctico, começou
recentemente a formar-se com um nome que respeita a ordem da simetria: o
“direito ao esquecimento”. Encontrámo-lo nos últimos dias, reclamado por
cidadãos e reconhecido nas mais altas instâncias. Primeiro, foi um cidadão da
União Europeia que exigiu à Google que apagasse todos os links dos seus dados pessoais, o que esteve na base de uma
determinação do Tribunal de Justiça da União Europeia no sentido de que tal
exigência seja cumprida. Depois, foi Strauss-Kahn que também invocou o “direito
ao esquecimento” para impedir a circulação do filme de Abel Ferrara, baseado
nos escândalos sexuais do ex-presidente do FMI. A Internet, tendo-se apropriado
da clássica ars memoriae, realizou
finalmente o que esta nunca tinha conseguido: os dispositivos mnemotécnicos,
convertidos em poderosos algoritmos, que põem à nossa disposição, virtualmente,
o saber universal. Tal utopia teve os seus longínquos percursores. Recordemos
dois: em primeiro lugar, Giulio Camilo, (1440-1544), um homem que viveu já numa
fase tardia do Renascimento italiano, do qual foi publicado postumamente, em
1550, um longo escrito intitulado L’idea
del theatro, que era de certo modo uma chave para entrar no labirinto do
saber. Esse escrito remetia para a um “teatro da memória”, em madeira, que ele
teve o sonho de construir, em que o saber universal era imaginado com uma configuração
cénica. O fundamento desta encenação era a cosmologia platónica do Corpus Hermeticum. Recordemos, em
segundo lugar, Aby Warburg (1866-1929), que trabalhou nos últimos anos da sua
vida num atlas das imagens, o Bilderatlas
Mnemosyne, que foi uma tentativa de mostrar como a memória cultural
sobrevive nas imagens. À semelhança do Atlas, e também fazendo de Mnemosyne, a
mãe das musas e deusa da memória, uma figura de invocação, a “Biblioteca para
as ciências da Cultura”, a Kulturwissenschaftliche
Bibliothek Warburg, que fundou na sua casa em Hamburgo, também devia
funcionar com expedientes mnemónicos. Nela, os livros estavam ordenados não
pelas regras da biblioteconomia, mas segundo o “princípio da boa vizinhança”, o
que lhe dava uma feição labiríntica e convidava o visitante a seguir percursos que
reflectiam o estado das investigações do próprio Warburg. Tanto no caso de
Giulio Camilo como no caso de Warburg, os dispositivos da memória requerem uma
disposição espacial. Eles não tinham ao seu dispor os meios próprios do link, mas, em ambos, a lógica de
funcionamento aproxima-se do link.
Finalmente, parece que a Internet realizou uma antiquíssima utopia, mas
começamos a perceber que há um preço a pagar: tudo nela se torna irreparável,
tudo é definitivamente assim, como as
penas que se cumprem eternamente no inferno. Para Warburg, a memória social ou
colectiva polarizava-se historicamente, era reactivada pelo contacto com uma
determinada época. Na Internet, todo o saber é sem tempo e sem história, um
espectro que nunca ganha corpo. Ela é a impossibilidade do esquecimento. Ora,
nós sabemos muito bem que o esquecimento é a pátria da consciência.
Sem comentários:
Enviar um comentário