domingo, maio 11, 2014


António,
Ao que isto chegou…
Quem havia de dizer?
O Verão principia, as árvores reverdecem
(da capo),
mas o sol tem um enorme tumor na barriga,
cheio de vazio,
e, por entre as ameias da fortaleza,
que outrora acrescentava à paz do mar,
um olho e sua enormidade
espreitam e obliteram qualquer chance  de futuro.

Esse abcesso, esse globo, são os atributos da morte
– nós sabemo-lo –,
mas que, ao menos, a morte viesse num só golpe
(nisso, ao menos, honesta)
e não persistisse em varejar as copas,
ensurdecedora e estúpida,
até à queda do último fruto.

É o preço a pagar pela poesia?
Seja…
Liberdade e raiva, vida e apagamento –
sempre o bem se consome, calcário feito cal,
mas não era preciso levarem-me a leilão
a adolescência, as sombras, as teias de saliva,
cada semente,
cada sílaba.

Morrerei sem retratos. Nem de mim nem de ti
nem de uma ou outra mão que me tocou o ombro.
(O esforço é um revigorante da memória –
deixemos o assunto por aqui).
Morrerei sem cadastros, sem datas ou saltérios,
com que embalar as noites às crianças do bairro,
e dessas perdas a que mais me doerá
é a caligrafia do teu punho nervoso.

Contava um dia procurar-te com ela,
porque por ela te hão-de conhecer.
Mas que importa?, afinal, se te acharás, por certo,
sentado junto ao rio da nossa madrugada,
onde o cheiro a amoras é um sonho inebriante,
a grande realidade, sem tempo nem aldravas
e sem a mesquinhez dos que morrem saudáveis.

- Miguel Martins

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