quinta-feira, maio 01, 2014

AFINAL PARA QUE SERVE A POESIA EM TEMPOS DE CRISE?


Texto de Miguel Mochila
 
Andamos em época de balanços de defuntos, e algumas vozes procuram a resposta a esta pergunta, de modo mais ou menos directo. Este texto baseia-se numa reflexão a partir, com e contra “Com respeito às palavras” (Hélia Correia), A Misericórdia dos Mercados (Luís Filipe Castro Mendes) e “As imposturas da poesia” (António Guerreiro).

Não podemos ignorar, por um lado, que o discurso acerca da crise é uma elaboração dos engenheiros e fiscais da mesma, da vigorosa crise económica, a qual lhes convém nos seus propósitos de expropriação, de erradicação do próprio sentido do que é próprio, do que a cada um de nós nos é individual. Por outro lado, a poesia constitui um outro modo discursivo sobre a realidade que recusa a própria concepção instrumental da utilidade do poético, que seria já um modo de se deixar expropriar. Falemos antes de khrisis, da condição humana mergulhada na permanência de um estado intervalar que impossibilita a realização dos desígnios mais profundos de cada homem e de cada mulher, aquilo que assinala o hiato entre o que projecta e o que concretiza, e entenderemos o papel que à poesia cabe, que lhe coube sempre. É nesse domínio que lhe apraz enveredar pelas pistas da dimensão antropológica e individual da vivência crítica que encontra hoje, apenas e só, manifestações metamorfoseadas no seio do capitalismo, o qual procura sustentar uma estrutura social em colapso.
            Se essa é somente uma outra face apocalíptica das que a História nos legou, nem por isso a poesia a ignora, não se lançando no entanto no olhar casuístico que não é o seu (deixemo-lo para os burocratas dos orçamentos para quem os Mirós são coisa para saldar com a asneirenta urgência do agora, das contas para pagar), não silenciando a dimensão civilizacional em que a própria estrutura da crise (que ora é capitalista) ancora. A poesia não se demite. Mas recusa submeter-se ao discurso do negócio e a sua matéria apresenta uma auto-referencialidade que a isenta de uma participação, de uma transitividade, na relação com um mundo que repudia, e nem poderia ser de outra forma. A evidência de uma era em colapso, por intervenção totalitária da lógica dos mercados, desampara o indivíduo de um sentido humano, próprio, para a sua vida, o qual se vê confrontado com uma ausência de finalidade, perdendo o horizonte projectivo da sua existência, e é apenas então que a poesia se faz de intervenção, no único sentido pleno do termo.
            Não podemos, é certo, ignorar que o nosso tempo abunda em motivos para que a poesia se exaspere e se rebele. É bem sabido que o peso do poeta na balança comercial é menos de zero e que a sua subsistência se encontra aprazada até novos cortes nas despesas, ou simplesmente até que a asfixia dos grandes grupos editoriais controle definitivamente a totalidade dos sectores do mercado. Mas reparemos no que Luís Filipe Castro Mendes noticiou: a suprema perversidade desta relação com os mercados resulta do facto de estes se apoderarem de um predicado divino, a misericórdia, para relacionar-se com os indivíduos, e em particular com os poetas. Esta transferência faz-se esquizofrénica na medida em que apresenta um carácter descentrado e inconcreto. A misericórdia não emana, como outrora, de uma entidade, mas de uma imbricada abstracção difusa. Os poetas são alvos de uma misericórdia sem agentes, perante a qual o mal se banalizou. A sua pena é assim deslocada para uma absoluta ausência de significação. Importa notar, assim, e peguemos no belíssimo texto de Hélia Correia, “Com respeito às palavras”, recentemente publicado na Ípsilon, que de modo transparente o ilustra, que o inimigo do poeta, que o inimigo da pessoa, se fez figura sem perfil, um borrão sem rosto que agudiza, pelo desconcerto das armas e das palavras apontando para nenhum alvo, o sufocante clima de medo generalizado.
                Há uma arbitrariedade do mal que faz dos mercados agentes temperamentais: a sua compaixão ou a sua ira determinam o nosso futuro e o nosso comportamento não tem como adequar-se a uma relação de casualidade que não existe, e estamos por isso sujeitos ao uso sistemático do capricho que nos desresponsabiliza e nos vitimiza, numa das mais formidavelmente esquizofrénicas derivas da democracia. A poesia, como qualquer acção humana, perdeu assim toda a sua dimensão heróica, na medida em que dispersámos o inimigo até ele se diluir entre e dentro de nós. E tudo isto lhes convém, aos engenheiros e aos fiscais da crise, pois os sacrifícios que nos são exigidos se fazem em nome de nada, e a dor, o sangue, a tragédia, signos outrora salvíficos, não resultam em dignificação, mas sim numa determinada quantidade de gente cujas dores são cotadas nos mercados internacionais.
            Como pedir aos poetas que sejam qualquer coisa para além dos reformados da realidade? As coisas estão como devem estar: eles preferencialmente mortos, e o nosso despesismo pelo menos minimizado. Mas este não é só o tempo dos dispensáveis. Este é o tempo em que os dispensáveis não têm já sequer a dimensão do génio, da loucura ou da suma dignidade, pela sua resistência ao mundo avulso dos outros. É que o poeta já não é excepção. Aliás, essa é justamente uma das mais perversas conquistas do capitalismo. Refiro-me ao facto de constituírem os mercados um dispositivo com uma poeticidade sistemática que compete directamente com a própria poesia que a denuncia. O dispositivo poético dos mercados resulta na mesma auto-regulação que inventa neles uma monstruosidade, um alheamento da realidade a partir de uma artificialidade numérica que a poesia tão bem conhece. Também os mercados são autotélicos e não baseiam a sua valência numa relação verdadeira com a realidade, mas fictícia.
            Eis-nos pois mergulhados na coloração vocabular a que Hélia Correia se referia, a uma invasão do terreno da metáfora por um discurso da conforrmidade com uma centralização discursiva que reproduz os apelos do consumo e das relações humanas entrincheiradas nos furores do débito e crédito, do deve e do a haver. É neste ponto crucial que a poeticidade dos mercados descamba em qualquer coisa muito pouco afim da poesia, cuja discursividade da proliferação (de usos, de retóricas, de pontos de vista) é agora substituída pelo regime publicitário dos usos linguísticos das metáforas mortas da linguagem epigonal que os proprietários do planeta oferecem aos que andam por ele como arrendatários da vida. O discurso dos mercados é epigonal, é má literatura (com perdão dos doutores da mesma), que anula o estranhamento, aquele ressalto que a linguagem promove no real de que falava Maria Gabriela Llansol, autora que de nós todos é arredada para o catálogo dos visionários de culto que não são coisa de entender. Quando Hélia Correia exemplifica com a metáfora do estado gordo diariamente metralhada para dentro do nosso discurso como coisa que tratando de gorduras é de expulsar como todos os excessos de comer demasiado e de viver demasiado acima das nossas possibilidades, dá conta justamente de um investimento do discurso dos nossos senhorios no familiar, no repetitivo, nos efeitos propagandistas de uma empatia que mobilize até contra a razão e até contra o afecto humanos que nos não permitiriam aceitar de bom grado a expropriação a que somos sujeitos, a expropriação do que nos é próprio, as nossas vidas, impondo aquém de tudo uma consciência social (abstracção consistente na limitação da vontade pela entropia da harmonia das relações) que legitima por sobre as pretensões individuais à dignidade e à vida a absoluta necessidade moral do emagrecimento, em tempos das vacas magras (perdoe-se-me a grosseria da analogia) que desfilam pelas passerelles do mundo modernizado ultra-chique super-bem.
            A honestidade do discurso da poesia apresenta uma insensatez por conseguinte corrosiva, pois assume explicitamente a sua disposição falsa, o seu acesso discursivo, subjectivo, seja lá o que for que queiram chamar-lhe, como um modo de acesso ao real. Este efeito hiper-realista (este sim) de afirmação da relatividade de tudo (morram os pós-modernos!, fez-se porreiro dizer) criou no discurso vigente os seus exaltados anti-corpos, essoutra espécie de sintomatologia do desprezo pelo indivíduo que tantos se negam a rastrear. E por isso temos visto essa necessidade de exclusividade discursiva, de ataque concertado (e quase nos fazem sentir estúpidos, efabulatórios, de o dizermos, quase!) à cultura em benefício da retórica das dívidas e dos déficites e dos juros e do sermos leais no cumprimento dos nossos compromissos com o dinheiro e com as urnas e com os prazeres adiados, com o ócio adiado porque o negócio é que sim, por causa da qualidade de vida e da casa e do carro e das férias tipo marmota ao sol. E certa literatura recusa, pois, aflita de viver como tal, as confianças com a literatralha ambulante que as nossas cadeias de despachamento dos livros nos oferecem, veiculando uma dimensão underground que assume um discurso de marginalidade auto-proposta em tempos de massificação da asfixia das transacções tipo 4x100 metros estafetas que condenam o mercado livreiro à vertigem da velocidade dos processos e da precisão da técnica de distribuição e de divulgação, que é tão contrário ao próprio tempo da leitura que a poesia se exige.
            É disto que a poesia se demite, pois conhece bem – conhece desde dentro – a aleatoriedade associada aos conceitos gerados no seio de qualquer sistema semiótico, dependentes como estão dos próprios elaboradores do discurso, dos detentores da voz, daqueles que se situam no locus de enunciação e interpretação central num determinado contexto, os quais visam o cumprimento de uma agenda própria e, em última análise, de uma legitimação institucional que perpetue tanto quanto possível esse lugar ao sol da falta de sol. Acontece que os mercados também sabem bem – sabem-no desde dentro – que a poesia sabe que a História é uma construção, não um dado mas um conceito, e é por isso que radicalizam os favores dessa institucionalidade ao serviço das forças culturais dominantes, cujos agentes veiculam o repertório, conjunto de normas e elementos que regulam a produção e a recepção dos textos (escaparates, notas de imprensa, secções “críticas” de jornais generalistas, tops de vendas, “academias”, planos nacionais de leytura, prémios literários, redes de distribuição e ouros quejandos), num quadrante cultural/histórico que procura conservar-se face às forças periféricas, em que a poesia exerce o seu domínio. Essas forças centralizadoras, que Bourdieu, Dubois ou Schmidt definiram, procuram por isso apropriar-se de datas pretensamente celebrativas da poesia. E é assim que vemos (pela televisão!) o nosso actual Presidente da República a organizar em ameno ambiente caseiro, com direito à informalidade aprazível de uma rábula familiar em modo de feira de variedades, um recital poético que contou com a presença de exactamente zero poetas, que é um modo de fazer força para os não haver e de se gostar deles e muito quando mortos. Este é o silêncio eucaliptal que uma semelhante besta exigia à Alexandra Lucas Coelho na cerimónia de entrega do Prémio da Associação Portuguesa de Escritores, porque ela inventava um ruído nas contas de débito e crédito da democracia, em que os credores são eles, os criadores dos tais planos nacionais de leytura e destruidores de ministérios consensualmente despesistas como o da cultura e aos quais deveríamos todos agradecer muito pois tendo eles a faca e o queijo na mão não nos cortam o pescoço mas as pernas a prestações.
            E se a poesia manifesta uma espécie de desejo auto-erótico, como bem nos avisou António Guerreiro em texto recente no também emagrecido Ípsilon, é porque ela é bem coisa de se tocar com os órgãos todos dos sentidos que se têm querido dormentes à conta das injecções de soporíferos a que têm sido submetidos pelo discurso do muito trabalho e do muito ginasticar para que sejamos saudáveis em frente a máquinas que marcam as pautas das batidas cardíacas até que estas se alinhem com o ritmo de um mundo que anda todo a ritmo certo e não queremos cá arritmias, é porque ela é bem a arritmia do tocar a linguagem com o sémen e o sangue das coisas que têm corpo de serem ditas com palavras de dizer e não de repetir até que a mentira se torne verdade. É porque a poesia é bem coisa de (e regressemos as vezes necessárias a Hélia Correia) empregar a palavra com verdade, de recusar o discurso engodado da má literatura política, politizada, policiada, coisa de reinventar, voltando a elas, as palavras, de nunca responder mas ripostar, de não devolver mas desbastar, sem nenhuma revolta mas com ânimo, com alma. A poesia está aqui, queiram-na ou não, para animar a malta. Para termos mais alma e menos malta.

 

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