Muito para lá de um texto
panfletário, A Misericórdia dos Mercados
(Assírio & Alvim) recupera a veia entre o satírica e o desencantada de Luís
Filipe Castro Mendes que, em resposta directa a Hölderlin, se pergunta para que
servem os poetas em tempos de indigência. Partindo de uma situação de disforia
relativa ao presente (“Voltar à poesia, porque mais nada/cresceu entretanto”,
“voltar à poesia para estar mais longe/do que sou”), o autor compreende a
dimensão antropológica e individual da vivência da fase crítica de que nos
ocupamos no seio do capitalismo, verificando como a estrutura social que nos
enforma é um sintoma de uma crise que se liga às questões fundamentais da
condição humana, da relação do sujeito com a passagem do tempo, com a
inexorabilidade de um sentido e com a efemeridade da vida.
A procura de um refúgio na matéria
poética resulta da evidência da auto-referencialidade discursiva que a
assinala, que a isenta de uma participação ou de uma transitividade na relação
com um mundo vil. Na poesia, nesse “jardim onde as flores/crescem para dentro
de si próprias”, visa-se uma “distância sem rumo nem projecto”, em réplica à
perda de uma ordem não apenas social mas existencial que denota uma
estrangeiridade do sujeito num presente em que se não reconhece (“O passado é
um país estrangeiro,/mas é esse para sempre o nosso país”), e em cuja relação
se descobre como tendo falhado a vida: “Usei de mim o que não tinha de melhor/e
o melhor que havia em mim nunca cheguei a entender”.
A evidência apocalíptica de uma era
em colapso, por intervenção totalitária da lógica dos mercados, desampara o
indivíduo que se vê confrontado com uma ausência de télos, de finalidade, perdendo assim o horizonte projectivo da sua
existência, o que o faz sentir “Saudades do futuro”. Essa é uma condição
agudizada na perspectiva do poeta, cujo peso na balança comercial é menos de
zero (e esse foi sempre o seu modo de ser mais) e cuja existência está por
conseguinte a prazo até novos cortes nas
despesas que definitivamente o votem à nulidade: “Nada representamos. Não
damos lucro./Os mercados ignoram a poesia/e os editores toleram-nos por
enquanto,/como um luxo secreto ou fantasia”. O autor evidencia assim o irónico
posicionamento do poeta que se vê vitimizado pela sua própria cultura de consciência,
em tempos que a dispensam, pois o próprio poema exige que nele se saldem as
contas da vida: “o poema perfila-se, como um auditor de contas,/e obriga-nos a
olhar o (pouco) que hoje fomos”.
Forçado a confrontar-se com a sua
condição, o poeta vê-se ainda ferido pela mais perversa conquista das
conquistas dos mercados, a qual radica no facto de constituírem estes um
dispositivo com uma poeticidade sistemática que compete directamente com a própria
poesia que a denuncia. O dispositivo
poético dos mercados resulta na
mesma auto-regulação que prefigura neles uma monstruosidade, um alheamento da
realidade a partir de uma artificialidade numérica que a poesia tão bem
conhece. Porque “O capital regula-se a si mesmo e as leis/são meras
consequências lógicas dessa regulação”, os mercados dispensam cada um dos indivíduos
que os servem e “a realidade é um ente estranho com o seu plano próprio/(a sua
agenda, como se diz agora) que não passa por nós/e que nós nunca conheceremos”.
Como a poesia, também os mercados são autotélicos (“Os mercados são
simultaneamente o criador e a própria criação”). Terrível é considerar, com o
autor, que tinha talvez afinal razão Foucault quando afirmava que a morte de
Deus coincidiria com a morte do Homem. Nisso que tantos humanistas tinham visto
uma oportunidade para redescobri-lo como valor axiológico fundamental, surgem afinal
os mercados como aquilo que o dispensa.
A suprema perversidade desta relação
com os mercados resulta do facto de estes se apoderarem de um predicado divino,
a misericórdia, para relacionar-se
com os indivíduos. Esta transferência faz-se esquizofrénica na medida em que
apresenta um carácter descentrado e inconcreto. A misericórdia não emana, como
outrora, de uma entidade, mas de uma imbricada abstracção difusa. Não é Deus,
não é Ele que nos pune ou nos perdoa (“Nem um deus aparece para o podermos
recriminar!”), somos antes alvos de uma pena e de uma misericórdia sem agentes,
perante a qual o mal se banalizou. A nossa pena, se outrora era investida de
uma lógica de mandamento e de pecado, se cumpria uma tábua de premissas que
podíamos aceitar ou recusar, é agora deslocada para uma absoluta ausência de
significação. Somos premiados e punidos exactamente por nada, pagamos as dívidas que não criámos, com os juros das
nossas vidas, e convence-nos uma maioria democrática que é forçoso que assim
seja, para um bem maior sempre adiado, a partir de uma vasta gama de boas
intenções entoadas por pessoas que “pensam que estão a pensar”. Esta arbitrariedade do mal, conforme a
observou Hanna Arendt, faz com que os mercados se transformem em agentes
temperamentais: a sua compaixão ou a sua ira determinam o nosso futuro e não
sabemos o que fazer para os deixar menos irritáveis.
E como tal, agora sim, talvez tudo seja permitido. Ainda havia um outro limite
depois da morte de Deus. Também aqui o despudor da poesia encontra terreno
fértil, por entre alfinetadas nos alemães (vejam-se os poemas “Um requiem
alemão” e “Conversa no Tiergarten”) e denúncias do facto de habitarmos um tempo
não-heróico, no qual os sacrifícios que nos são exigidos se fazem em nome de
nada, em que a dor, o sangue, a tragédia não resultam em dignificação ou num
bem maior, mas sim numa determinada
quantidade de gente cujas dores são cotadas nos mercados internacionais.
Conforme os versos do autor, “Os mercados não investem na alegria:/o sangue, o
suor, as lágrimas,/já não como matéria de heroísmo,/mas como modo de
legitimação moral/da especulação financeira”. A vulgarização do sofrimento
avulso e mensurável em termos de mais-valias faz do mesmo condição necessária para
que o desequilíbrio que sustenta o sistema capitalista se mantenha. Enquanto
combatia, em nome da paz e do equilíbrio, a ameaça comunista, o capitalismo
construía um mercado onde o sofrimento pesaria nas balanças comerciais e entraria
necessariamente para as contas dos operadores do discurso vigente, um discurso
pouco a pouco inseminado no quotidiano social e que entretanto se cristalizou:
“tais são os produtos convenientes/ao desequilíbrio constante/em que assenta a
nova economia./É esta a verdadeira revolução permanente”.
Num tempo assim, os poetas não podem
ser senão os reformados da realidade:
preferem-se mortos, para combater o despesismo.
Este é o tempo dos dispensáveis (“Mais que supérfluo, daninho./Sustentarem-me é
um embaraço”), daqueles que não podem senão “Resistir, como sempre fizeram os
humilhados./ Decorar palavras antigas./Repeti-las, para que não sejam
esquecidas”. Num sistema assim tão descentrado, a lista dos derrotados não tem
fim e ninguém está a salvo de vir a
ser punido por um crime que não cometeu. A história dos condenados da História
não pode terminar senão com a revolução mais árdua e radical. Este é o sistema
em que ninguém é e todos somos vítimas e verdugos, em que o perigo emana de
todo e de nenhum lado. A revolução é inevitável, pois se chegará ao ponto em
que não teremos rigorosamente nada a
perder e ninguém a temer, nenhum
Deus ou ditador a quem culpar: “Nós peregrinos caminhamos para ti desde todas
as derrotas,/filhos espúrios da História, enjeitados de todos os triunfos”,
“Somos muitos séculos e muitas dores,/chegamos a ti com as feridas abertas/e o
coração endurecido. Mas viemos”. Haverá um dia para chegar.
1 comentário:
ansiosíssimo por ler este livro.
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