domingo, março 16, 2014


AS MANIFESTAÇÕES DE SUPERFÍCIE

 

O principal tropismo das redes sociais (como o facebook), dos blogues e do jornalismo instantâneo online são as manifestações de superfície. Eles afogam-nos na prosa do mundo e na banalidade, criam ondas e centros de atracção, recriam uma lógica tribal e fornecem o ornamento da massa. Transpondo para o nosso tempo uma noção que serviu para analisar os sonhos colectivos que o século XX viveu de olhos abertos, podemos dizer que esses fenómenos de superfície por onde saltitamos são fantasmagorias, imagens mágicas do nosso tempo. Não podemos ignorar o valor dessas fantasmagorias para a construção do sentido de uma época (a nossa), mas se passeamos de fenómeno em fenómeno com o dedo bem apontado, não se chega a ver a coerência interna de todo esse conjunto de fenómenos. Em suma: não se consegue fazer a obra de montagem das estruturas formais que produzem e tornam inteligível a realidade (porque a realidade é uma construção), nem se chega jamais às pequenas totalidades. Nestes novos media (que passaram, aliás, a ser o modelo dos antigos media), tudo é apontado, citado, denunciado, satirizado. Mas não há tempo para a análise e para a interpretação. A ideia de que as manifestações de superfície, na medida em que não são asseguradas pela consciência, garantem o acesso ao conteúdo fundamental de uma época e ajudam a determinar o lugar que ela assume no processo histórico foi uma contribuição importante de sociólogos outsiders do princípio do século XX, tais como Georg Simmel e Siegfried Kracauer. Cada um deles, à sua maneira, percebeu que a realidade só pode ser compreendida a partir dos seus extremos e das suas fantasmagorias, e por isso ambos partiram dos fenómenos superficiais para chegar às tais “pequenas totalidades” (a grande totalidade, essa, era visada pela análise marxista de um Lukács). O mundo das coisas, material, foi assim visto segundo aquele princípio de que o bom Deus se esconde nos detalhes. O que fizeram estes sociólogos e filósofos da “superfície” do mundo moderno foi olhá-lo do exterior, de um observatório experimental que eles próprios edificaram e de onde analisaram, interpretaram e restituíram, sob a forma de miniaturas, a forma e a imagem do mundo e da sociedade. Quando lemos hoje Simmel e Kracauer percebemos perfeitamente que o uso que fazemos das tecnologias da informação e da internet permitiram-nos criar a ilusão de que vivemos num mundo completamente fanérico e onde foi potencializado o exercício da crítica. Ora, a deambulação desenfreada pelas manifestações de superfície (o vício maior a que estamos expostos) impede-nos de parar e sondar os mecanismos secretos da sociedade. Daí, este paradoxo que decorre das facilidades da indignação, sempre muito mais rápida do que a análise: aquilo que é hoje objecto de uma onda de indignação ou de sátira colectiva vê legitimado o seu lugar, teve direito a um atestado de existência. É exactamente o mesmo que acontece aos cronistas que concitam o insulto e um vasto consenso de que têm uma jubilosa inclinação para a imbecilidade: isso garante-lhes o posto, porque passam a ser olhados com aquele fascínio universal que a estupidez suscita. Reconstruir o sentido da nossa época tornou-se mais difícil do que nunca. Não por falta de atenção às suas manifestações de superfície, mas porque tudo se tornou “pessoal”, isto é, diz sempre respeito a pessoas, a entidades civis com nomes próprios. É a lógica do facebook. O que fica, assim, por penetrar são os laços impessoais e anónimos da dinâmica social.

- António Guerreiro
in Ípsilon (14.03.2014)     

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