A DIREITA E AS MITOLOGIAS DO POETA
A propósito de um texto aqui publicado na semana passada,
onde defendia que não podemos definir o que é uma cultura de direita sem termos
em conta que ela também habita no pensamento e nas concepções artísticas e
literárias de gente de esquerda (e dava então o exemplo da concepção do poeta
que encontramos no discurso de Manuel Alegre), um amigo arguto e bem treinado
nas coisas da política e da literatura lançou-me um desafio: “Usando o mesmo critério
de classificação, não será a concepção do poeta de Herberto Helder, do lado da
magia e do xamanismo, tão de direita como o ‘vate’ de Manuel Alegre?”.
Ensaiemos uma resposta: aquilo que eu aponto no discurso de Manuel Alegre é a
exaltação do papel “fundador” dos poetas, atribuindo-lhes uma função de “guia”
e de modelo de uma comunidade de espíritos operantes na polis. Neste sentido, ele poderia subscrever uma velha frase de
Shelley: “Os poetas são os legisladores não reconhecidos do mundo”. E era neste
sentido que eu o aproximava do Dichter
como guia (der Dichter als Führer)
que germinou no círculo de Stefan George. O termo Dichter pode ser traduzido por poeta, mas tem um sentido muito mais
amplo: alude a algo primordial, que soa hoje de maneira empolada e presunçosa,
e não se confunde com a noção de escritor. Rilke foi, no seu tempo, considerado
um autêntico Dichter. Todas as ilusões
alegrianas do poeta como guia e das valentias poéticas desembocam em teorias
neo-clássicas. Daí, a queda na poetização e na romantização da política, onde
reconhecemos também a cultura da direita tradicional, fundada num
pseudo-enraizamento mítico. E temos de sublinhar: é sempre pseudo, porque se
trata de uma apropriação fraudulenta e de uma manipulação do mito genuíno. Em Herberto
Helder, estamos noutro lugar completamente diferente. E é errado fazer dele o
retrato de um poeta em fuga num Olimpo, não propriamente a tocar harpa, mas
outro instrumento menos melodioso. Herberto experimentou quase com uma
consciência trágica o que é o desencantamento do mundo e percebeu muito bem que
a poesia, num universo completamente secularizado, tem de ser conquistada
através de um gesto grandioso. Essa conquista implica a concepção de que há um
território do “sagrado”, da “experiência interior” (no sentido de Bataille)
que, por mais escondido que esteja, é o lugar a que a poesia deve aceder. Esse
lugar é o do “terror” e não conhece nenhuma beleza daquelas que os
neo-classicismos, poetizações, romantizações e estetizações, à maneira da cultura
de direita, tanto gostam. Herberto Helder, penetrando num território não
secularizado, não coincidente com as temporalizações da história, conduz-nos à
relação entre mito e poesia. Pelo contrário, em Manuel Alegre não temos senão
as mitologias do poeta e da poesia – à semelhança da cultura de direita que
pretende sempre transformar a história em mito. É curioso verificar como uma
cultura de direita atravessa sectores que se pretendem opostos a ela. Neste
sentido, seria interessante analisar a enorme ambivalência do cenáculo onde pontificou
Natália Correia: o seu gosto pelos esoterismos e pelo paganismo, a atracção por
diversos retornos, entre os quais o retorno ao mundo subterrâneo materno (tal
como ele se manifesta na exaltação de uma “Mátria”, algo tão próximo das
imagens arquetípicas de um Ludwig Klages) inscrevem-se claramente numa cultura
de direita. Que, entre nós, brota quase sempre espontânea, com alguma
dificuldade em reconhecer-se como tal e em saber o seu próprio nome.
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