segunda-feira, fevereiro 17, 2014


DINHEIRO É ARTE
 

Na fastidiosa discussão sobre a venda em leilão dos quadros de Miró, omitiu-se geralmente esta pergunta incómoda, mas indispensável para percebermos o que está em jogo: porque é que aqueles banqueiros do BPN, cúpidos e filisteus de nome próprio - até muito para além do que a lei permite - adquiriram um acervo artístico que agora muitos querem preservar em território nacional, concedendo-lhe uma sublimidade que não aceitam ver trocada por um valor redutível a capital real? A resposta é óbvia e toda a gente a conhece: porque os banqueiros, na medida em que sabem muito de dinheiro, têm também da arte este saber importante e necessário: as obras de arte circulam como o dinheiro. E se a arte se comporta como o dinheiro é porque o dinheiro se comporta como a arte. Mas esta última formulação já escapa certamente ao saber dos indivíduos da economia e das finanças que, dessa arte, são praticantes sem conceitos (e, como é sabido, intuições sem conceitos são cegas). É preciso ter lido Georg Simmel e a sua Filosofia do Dinheiro para compreender que o dinheiro pertence de facto e de direito ao “mundo espiritual”; ou ter sido alguma vez confrontado com esta afirmação do poeta Wallace Stevens”: “Money is a kind of poetry”. Nada exprime melhor a natureza mercantil do nosso mundo do que a arte. Os museus especulam hoje sobre as suas colecções exactamente da mesma maneira que os bancos: pondo o seu capital (a colecção), ou o capital de outrem, em circulação (através de exposições). Quanto mais ele circula, mais se acumula. A arte é puro valor de troca (de um ponto de vista marxista, representa a mercadoria por excelência) e tem um valor de uso nulo. Segundo o sociólogo francês Pierre Bourdieu, o valor simbólico da obra de arte, o “interesse pelo desinteresse”, é a imagem especular do seu valor de uso. O objectivo principal dos museus de arte contemporânea é obter a confiança do público na arte e no capital, segundo o princípio de que as duas coisas são inseparáveis. Veja-se, por exemplo, a estratégia do Guggenheim, ao transformar os produtos da arte contemporânea numa ideia de poder económico, mais do que cultural, como fez em Bilbau, que é também um caso ideal de fabricação da aura artística, de transformação do contemporâneo numa classicidade monumental e num efeito de sacralidade. Percebendo esta lógica, facilmente se percebe também a razão pela qual acabam por ter pouca força, para se imporem contra a lógica puramente económica do raciocínio filisteu, os argumentos da “inteligência”, da “sensibilidade” e da “educação artística”: os quadros de Miró não nos chegaram senão por via do investimento baseado na rentabilidade e não circularão senão impulsionados pelo movimento que os fez chegar até nós. Mas há um argumento de que nos podemos servir sem nos tornarmos o servus servorum do Estado, da Beleza e da Arte, que a própria condição epocal, e não apenas a conjuntura nacional, tornou risível. Não é preciso ser um encartado especulador da mercadoria artística para saber que se for posta à venda uma grande quantidade de Mirós, o seu valor de mercado desce. E se noventa e nove por cento dos Matisses de todo o mundo fossem reservados em fundos, a procura por esse escasso um por cento em circulação seria enorme e o preço seria muito mais elevado. A um governo como o que temos, não queiram os cidadãos ministrar educação artística: é uma tarefa impossível, ociosa, cujo resultado trará sempre pouca arte e muita ideologia. O que é imperdoável é que quem sabe tão bem que arte é dinheiro pareça não estar à altura da regra de que dinheiro é arte.

- António Guerreiro
in Ípsilon (07.02.2014)   

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