domingo, janeiro 12, 2014

Entrevista a Daniel Jonas (na íntegra)


Entrevista a Daniel Jonas conduzida por António Guerreiro e publicada na edição do Ípsilon de dia 10.01.2014 com alguns cortes.


Passageiro Frequente é um atestado do alto posto a que Daniel Jonas ergueu a sua escrita, que tem aquele carácter idiomático e fundador próprio dos poetas fortes – um dos mais fortes da poesia portuguesa actual.


Esta entrevista nasceu da forte interpelação lançada pelo último livro de Daniel Jonas (Porto, 1973), Passageiro Frequente (Língua Morta). Não é uma surpresa para quem já tinha lido Os Fantasmas Inquilinos e Sonótono (publicados pela Cotovia, em 2005 e 2007, respectivamente), mas agora tornou-se evidente que estamos perante um dos autores mais fortes da poesia portuguesa actual.

Há momentos neste livro em que o leitor acede a regiões bem altas, excepcionais (leiam-se, por exemplo, os poemas Casas, Imitação de vida e Paredes de vidro). A poesia de Daniel Jonas atravessa tempos diversos: o clássico, o romântico, o moderno, numa apoteose de rastos e linhagens que comparecem subtilmente. Nela encontramos, no mais alto grau, a ideia da linguagem poética como concentração e densidade. Ela é hábil nos jogos retóricos e de palavras, mas nunca deixa que isso se torne um exercício fútil e gratuito. De igual modo, a sua forte dimensão conceptual (de poesia pensante e auto-reflexiva) não elimina de modo nenhum o lado permeável às grandes tonalidades afectivas, por vezes até num grau exasperado, de poeta “decadente”, impregnado de consciência do fim.

Esta entrevista resulta de uma troca de e-mails. O método não foi decidido pelo facto de entrevistado e entrevistador estarem distantes (Daniel Jonas vive no Porto), já que se tratava de uma distância fácil de transpor. A entrevista por escrito correspondeu antes à vontade de entrar num “jogo” diferente daquele que é próprio das conversas gravadas.



"Os Fantasmas Inquilinos" (2005) e "Passageiro Frequente": estes títulos, de dois dos seus livros, podiam ser títulos de livros de mistério ou policiais. Gosta de brincar aos géneros ou, pelo menos, de fazer da poesia um jogo, como se ela fosse "a ocupação mais inocente", como dizia Hölderlin?


É bastante interessante que ponha o problema assim. Nunca me tinha ocorrido esse lado herculano, no sentido poirotiano, do termo. Pelo menos não nessa fase. Mas, curiosamente, sempre identifiquei a interpretação literária posterior como uma série de deduções amadoras à Poirot. Neste jogo particular, ganharia o detective literário que mais comovesse o perpetrador do crime e da fuga (o crime aqui poderia ser o de autotelismo, uma espécie de onanismo literário que tem tendência a abrir-se a uma série de peeping Tom em Pigalle). Seria um jogo notavelmente honesto, note-se. O autor do enigma trataria de reconhecer o mérito da sua resolução, nos casos em que não houvesse claramente uma superioridade auto-evidente da solução para o problema. Comprometia-se a reconhecer uma aparente verdade. Claro que neste ponto não me passaria pela cabeça que o vate poético seja o detentor da verdade exegética. E referia-me há pouco às deduções como sendo amadoras, no sentido em que este tipo de actividades não é propriedade da instituição universitária ou da comunidade de críticos literários mais ou menos avençados à mesma instituição (a universidade aqui seria a Scotland Yard) e por Poirots não se entenda exactamente um profissional – ou amador - liberal admiravelmente rebelde e competente. Mais do que Poirots, parece-me que o nosso excedente são Pierrots, que é o que chamaria a propósito de muitos tarefeiros em jornais e revistas que fazem uma actividade parda, sem estruturação dos seus levantamentos críticos, tendencialmente gratuitos e interesseiros, com o prémio do próprio livro que recenseiam. Mas temo ter falado mais de outros do que do jogo que, no seu sentido, eu acabaria por propor na minha actividade artística…


... E eu temo ter evocado o nome de Hölderlin em vão, depois de lhe oferecer as pistas policiais que , como se nota, fazem as delícias de um poeta dotado de uma "malvadez estética". É a segunda vez que utilizo esta expressão do Schlegel para me referir à sua poesia. Reconhece-a como legítima? Como se sente ao ser assim colocado do lado do mal?


Parece-me que a invocação de Hölderlin não terá sido totalmente em vão. Creio que precisamente resulta dessa “malvadez estética” schlegeliana de que fala, no sentido em que Hölderlin é um dos mais inclassificáveis poetas alemães, e não só alemães, senão mesmo transfronteiriços. Um poeta que, devo dizer, me diz muito. Apesar de muitas vezes não saber o que diz. Este é, creio, o ponto de partida. Quando fala da minha poesia como um jogo de linguagem, um tipo de enigma policial, penso que aludirá a uma certa desorientação de leitura que ela provoca, um encriptamento que aliena de certo modo o leitor. O que noto é que, sendo a minha poesia aparentemente avessa a engavetamentos estilísticos ou funcionais, no sentido de saber o que diz, e sendo, talvez por isso, pouco amiga do leitor, pouco dada a grandes ajuntamentos fruitivos, diria, é também geradora de uma certa estupefacção, uma certa curiosidade, interpelando um gosto vago, sem uma classificação particular, aquilo que leva alguém a aproximar-se de um objecto sem perceber muito bem a razão de ser da sua atracção, do seu campo magnético. Esta atracção, esta insistência em torno dele, poderá relevar também de um certo enquistamento do observador, que é capaz de descrever aquele objecto como tratando-se de alguma coisa revestida de interesse mas não propriamente clara ou autodefinível. É esse apelo, quanto a mim, o não conseguir explicar o porquê do magnetismo desse metal, a dificuldade em classificá-lo numa qualquer tabela periódica literária, que pode estar no centro do problema. Eu penso que muito daquilo que nos interessa em arte não é necessariamente explicável, ou melhor dizendo, entendível. O que é fundamental é que seja conforme a fins, para usar Kant, ainda que esses fins não sejam muito claros. Há em nós um arqueólogo que anseia por datar e localizar com a máxima precisão possível um artefacto, e enquanto isso não acontece não sabemos se poderá pertencer ao nosso museu de gosto, seja contemporâneo ou antigo. A malvadez talvez venha daí, de nos julgarmos obrigados a explicarmos a razão de ser da nossa “química”. Mas é curioso, essa sua qualificação ganhou um certo discipulado. Já vi essa expressão repetida a meu propósito e isso teve origem numa recensão sua.       

De facto, era para aí - mas não exclusivamente - que eu remetia quando falava de "malvadez". Digamos que a sua poesia se faz contra o sentido, contra a interpretação, esvazia em vez de encher, é uma contra-palavra que interrompe. Não receia muitas vezes que isto se torne uma espécie de dialéctica negativa, muito tortuosa e talentosa?

Quando fala em "talentosa" parece-me que vai um tanto a contra-pelo, ou pelo menos indica uma astúcia deliberada contra o sentido, é isso?

Utilizei a palavra "talentoso" no sentido que você interpretou (o da astúcia), mas também no sentido da manipulação muito hábil, sem medo do artifício e do jogo das palavras, o que é o contrário de toda a eloquência patética de uma boa parte da poesia (sobretudo, a poesia lírica). E talentoso, ainda, no jogo com as referências literárias, no modo como as visita de maneira muito livre e sem se curvar diante delas.


Há, certamente, um lado malsão, possivelmente intimidatório ou até instigador de repulsa decorrente desse tipo de texto que não se deixa aprisionar facilmente. Não o faço como programa, não é um ethos que eu determine à partida como se de um arquitexto se tratasse. Ou seja, não é minha intenção alienar ninguém nessa recepção, embora não ignore essa possibilidade. O texto escolhe os seus leitores, é, para usar um tipo de teologia literária, determinista, já constituiu os seus eleitos – os seus ‘eleitores’ –, mas no sentido arminiano, não calvinista. Em todo o caso, não procedo às margens de uma certa ética. E não me parece que muitos textos sejam assim tão tóxicos. Penso que se alguma coisa define o que faço é uma certa heresia heterodoxa em que tudo é convidado a entrar. E creio que alguma da minha poesia é razoavelmente imediata, instantaneamente refrescante, digamos assim. Quando falou em “contra a interpretação”, levou-me para o ensaio de Sontag. No meu caso acho desejável que a importância espiritual da arte ande de braço dado com a importância intelectual. O problema é que quando o intelecto que dela usufrui se dá por frustrado denigre ou aborrece a arte em claro despeito. Gostava até que a minha poesia obedecesse ao motto da guitarra de Woody Guthrie “This machine kills fascists”, tomando por fascistas um tipo de leitores, diria de beletristas bordadeiras. Há leitores cujo reaccionarismo se verifica na sua reacção despeitada proveniente da interpretação falhada. Estão sempre à espera de uma certa compensação erótica. Aliás, a poesia deixou de dar trabalho, deixou de ser um tipo de linguagem de tal maneira concentrada, como, por exemplo, apontava M. S. Lourenço no seu livro “Os degraus de Parnaso”, quando a comparava à linguagem do sonho. Sem querer correr o risco de parecer edificante, penso que a poesia deveria ser capaz de formar, inscrever, modificar, vitaminar, exercitar, ser uma lenha sempre combustível e nunca extinta. É, se quiser, um problema matemático, um quebra-cabeças. Lá voltamos nós ao nosso jogo… Mas, como digo, o que me move não é um serviço de tonificação neuronal. Há pouco referiu Hölderlin. Todo aquele bonapartismo romântico representava para muita gente uma leitura dissociada da mentalidade vigente, uma linguagem próxima da loucura. Acrescento-lhe Wordsworth. Movimentos aparentemente simples que em nada chocam a nossa psicologia actual e que seriam à época tão ilegíveis que seriam capazes de relegar verdadeiros monstros poéticos para o alfarrábio. Por favor não leia por isto que me ocorre posicionar-me neste tipo de linhagem extraordinária. E, de qualquer maneira, Portugal é sempre um ferrete de humildade, lembra-nos sempre o nosso lugar. Não, o que digo é que a poesia nunca faz sentido na sua acepção hierática, profética. São palavras que não têm qualquer tipo de utilidade no zeitgeist. Talvez a sugestão seja de que estejamos perante um texto estrangeiro. Os chamados leitores de poesia são, não poucas vezes, leitores rancorosos, senão reaccionários, como chamei, que alienam preventivamente aqueles por quem julgam poderem vir a ser alienados. Exemplo máximo disto são poetas que lêem poetas. Mas em todo o caso a poesia não tem sentido. Não é que não faça sentido, note, mas não tem sentido. E é, não raramente, uma descarga purulenta de matéria residual de espíritos nervosos, obsessivos e algo abstractos. Wallace Stevens, por exemplo, é um ponto máximo de abstracção. Quando temos de tomar o “árabe” por “lua” percebemos o seu potencial dispersivo. Se podemos chamar a isso malvadez estética, não sei. Ashbery outro. Aliás, ele formulou isso muito bem, ao dizer qualquer coisa como ‘por um lado sou um dos escritores mais conceituados e lidos da actualidade, por outro ninguém me compreende.’ Não sei se lhe respondo, mas espero ter pelo menos percebido a pergunta.          


Quando diz que "A poesia deixou de dar trabalho" está a referir-se - muito criticamente, aliás - à tarefa do poeta, isto é, de muitos poetas actuais. Mas, nas suas palavras, a tarefa do leitor também merece um forte correctivo. Posso convidá-lo a entrar mais fundo nesta questão, que o levará certamente a falar da recepção e crítica da poesia?


Tal como há vários tipos de poetas, vários são os tipos de leitores, interessados nos seus poetas tal como os poetas estão, por sua vez, interessados nos seus leitores. Um poeta escreve sempre para o seu leitor, independentemente do velho disclaimer, que na verdade se tornou uma espécie de mantra autoral, que professa escrever o poeta apenas para si próprio, assumindo aliás uma proverbial má disposição ensimesmada, um tipo de Ebenezer Scrooge, que pode ter o seu quê de encantatório mas é pouco verificável. Aliás, esse interlocutor com quem o poeta se corresponde é, na verdade, ele mesmo, na medida em que o leitor reflecte, justamente, o seu poeta de eleição. Em todo o caso, e no que toca à tarefa de um leitor especializado, um leitor virtuoso, um pouco na esteira do pensamento do crítico inglês Matthew Arnold, para quem a verdadeira arte deixaria de fora toda a sorte de charlatanismo, na medida em que o único critério da poesia seria apurar o que de melhor foi escrito e pensado ao longo dos tempos, tal leitor deveria ser capaz de identificar a poesia capaz, já que a poesia deveria constituir-se um exemplo de virtude, indicando-nos um caminho intelectual para um modelo de formação humana do indivíduo nas suas valências intelectuais, morais e de cidadania. Convenhamos que nada poderia estar mais longe das preocupações dos leitores actuais. Ninguém lê poesia para tentar perceber como orientar a sua vida. A poesia é, no nosso espaço público, e não obstante aquela litania bastante politiqueira que diz que Portugal é um país de poetas, um parente pobre dessa descrição de Arnold. Sem crítica literária capaz a produção poética é, no mínimo, embaraçante e sem produção poética virtuosa a crítica formadora não é viável. O lugar da poesia está confinado a umas urnas cinzentas com tribos mais ou menos identificadas, ligeiramente saturninas e com os seus leitores mal alimentados. De resto, para lá desses lugares de holocausto e os seus sacerdotes, a crítica há muito acabou e o que nos resta são umas recensões anódinas que se limitam a parasitar apologeticamente nos cadáveres que exumam. O que vemos nós senão recensões que passam por crítica? E o mais das vezes essas recensões são uma paráfrase intolerável daquilo que avaliam. O próprio objecto a avaliar torna-se a sua avaliação, o próprio produto é a sua descrição mercantil, um tipo de sinopse disfuncional, normalmente benemérita. A tarefa de um leitor capaz passaria, em certo sentido, por inviabilizar a poesia nefasta e descartável, uma poesia replicadora de modelos limitados. Mas esse leitor deveria ser formado por um poeta (no sentido forte) que o chamasse a existir através de estímulos intelectuais exigentes. Os identificadores de profetas, uma espécie de Baptistas na sua virtude máxima ou de São Paulos apostólicos na sua contingência histórica, não têm lugar no nosso sistema pagão. O primeiro é, evidentemente, prestigiado no sentido em que é um profeta que profetiza profetas e que, não tendo o lastro histórico em que se apoiar, tem o condão de identificar grandes astros coevos, o que é sempre mais difícil do que identificar astros passados. Ora, a recepção da poesia no nosso espaço revela-nos que muitos são os charlatães. Eu creio que esse debate está em todo o caso deteriorado e não concebe fugas àquilo a que chamaria um plano nacional de empobrecimento cultural coercivo.


Apetece-me reagir, ao que acaba de dizer, com aquele grito que a Madame de Merteuil lança numa carta ao Valmont: "É a guerra!". Já lá vamos, podemos regressar mais tarde que ela ainda estará em curso. Se ousei evocar tão pérfida personagem, a Madame de Merteuil, não foi tanto por causa da sua resposta cheia de perfídia, mas porque a sua poesia tem algo de libertino e, com o seu ligeiro acento anacrónico e pouco puritano, faz-me pensar muito mais no século XVIII do que em qualquer declinação mais modernista. Desdenha deste comentário?

De todo. Consigo ver facilmente a razão pela qual me coloca fora da órbita do discurso poético da actualidade. Talvez a minha forma de profetizar seja a contrario pela via de um protesto anacrónico. Embora não o faça intencionalmente. Mas talvez essa seja uma razão para a minha eventual expatriação. Em todo o caso parece-me que o que faço visita várias ermidas, mas percebo perfeitamente a sua formulação, embora, curiosamente, o século XVIII é talvez o menos visitado das minhas leituras. Não posso, pois, dizer que a minha libertinagem radique num consumo setecentista, e talvez por isso a sua observação seja ainda mais acertada. Não preciso de consumir aquilo que sou!       

Um profeta  voltado para o passado, era como o Schlegel (ei-lo, outra vez) definia o historiador. O poeta, esse, passou há mais de um século a responder ao imperativo: "il faut être absolument moderne". Não vai certamente dizer que é impermeável a tal injunção de Rimbaud. Do que é que se sente, afinal, contemporâneo?

Para responder sem medo de falhar diria que me sinto contemporâneo de mim. Em todo o caso um profeta que lê o passado não é inteiramente infalível, tal como a história nos diz e a reapreciação canónica a que ciclicamente são votados os poetas também. No caso da injunção de Rimbaud ela faz confundir poética com fúria juvenil, uma juventude inquieta cuja produção poética é uma descarga violenta de testosterona. Mas essa descarga seminal pode ser incrivelmente classicista. O gerador de muito da minha poesia – e acentuadamente anacrónica – teve essa rebeldia sem causa como leitmotiv. A poesia é uma forma de nos estamparmos de mota na segurança do lar. Em relação à minha contemporaneidade a resposta seria claramente imprecisa. Quando afirmo que sou contemporâneo de mim apresento-me como um heterodoxo de uma religião unipessoal. Os meus interesses são semelhantes às minhas leituras conscientes e ignoradas, aos meus socalcos psicológicos, aos meus humores isabelinos. O poliedro resultante disto pode ser uma questão de estilo ou um problema clínico. Mas para não fugir radicalmente à minha autodescrição, poderia dizer que me sinto tão contemporâneo de Ossip Mandelstam como de Yeats, de Cinatti como de Ungaretti, ou seja, as leituras e as pátrias mentais e cronológicas são tão diversas que não é simplesmente possível fazer esse género de cartografia, isto para me ater somente à influência estrita de poetas. Sou é bastante mimético. Uma leitura pode despoletar em mim uma transmigração imediata. É um motor de arranque bastante eficaz. Em todo o caso, a coerência formal ou cronológica não é para mim uma necessidade. Posso tanto fazer odes a urnas como entrar numa espécie de transe neo-futurista espasmódico. Quando for classificável estarei morto.

Talvez seja honesto - qualidade que não sei se é pertinente nas coisas da literatura - informar os leitores de que, por ausência do entrevistador, primeiro, e depois do entrevistado, este diálogo esteve suspenso por mais de duas semanas. Tempo suficiente para inflectir-lhe o rumo, não acha? Ou, pelo menos, para introduzir uma questão da ordem da meta-entrevista: já tinha pensado alguma vez na entrevista ao escritor como um género, com as suas convenções e preceitos? Com a sua teatralidade?

Já tinha evidentemente fruído desse género sem saber que era muito legitimamente um género. Agora sim, passarei a entendê-lo como tal! Fico muito contente por fazer parte da génese de um, vis-à-vis com o seu criador! Talvez aqui aquilo a que chama teatralidade tenha que ver com o facto de a distância cronológica e física poder introduzir um valor de literário. Embora no momento em que eu respondo à sua pergunta o faça de rajada e sem intervenção de grandes pausas editoriais ou intervenções de cosmética posterior. Pareceu-me que deveria ser essa a política a adoptar. Mas apercebo-me de que ainda assim possamos ferir um certo valor ético em benefício de um plano estético. E porventura essa dimensão esteja no carácter diferido desta entrevista em concreto. Em todo o caso não deixa de ser entusiasmante estarmos a discutir questões de género dentro de um, o que nos aproximaria também de um lado ensaístico. As entrevistas, aliás, têm algo de socrático, sendo uma espécie de passeio peripatético. O francês leva-me para a entretien e não consigo deixar de pensar que tudo isto é entretenimento e a própria poesia o é também. Na verdade, o poeta é, de algum modo, um “entertainer.    

Seguindo a sua ideia, talvez seja possível traçar duas vias, na história da poesia, que se vão cruzando, alternando e combatendo: a poesia como entretenimento e a poesia que transporta consigo todo o peso do mundo e os abismos do sujeito. Ou seja, a poesia que se situa do lado da comédia e a que está do lado do trágico. Parece-me que você se situa mais do primeiro lado, sem deixar no entanto de espreitar o campo oposto. Em suma: é um poeta devasso que gosta de ter presente as regras puritanas...  

Ou seja, coloca-me do lado dos devassos que chegam a fingir que é dor a dor que deveras sentem. Mas não enjeito essa arrumação. Pareço, de resto, estar a afectar a poesia a duas grandes vias, a via excruciante do sofrimento hermenêutico e a via bela do cândido desprendimento, que é a do entretenimento. Embora possam parecer divergentes elas são perfeitamente complementares. E neste ponto regressamos ao jogo e à componente lúdica. Há de facto um lado perverso de pulverização de enunciados na minha poesia. E se ali puder esconder verdadeiros abismos do ser, como diz, num arrazoado aparentemente devasso, isso resulta de uma espécie de endurance evangélico. Por exemplo, quando Jesus exorta quem jejua a mostrar não um rosto macerado pela penitência alimentar mas antes uma cara lavada e enxuta, implicando que o sofrimento não deve ser visível, tal como quem ora deve orar no seu quarto fechado, e não à vista de todos em arremedos dramáticos nas sinagogas, batendo com os punhos no peito. Creio que parte da devassidão que resulta da minha poesia nasce de certa forma deste entendimento espartano. Há também o outro lado, em que me induzo um estado inicialmente postiço de sofrimento – e digo inicialmente postiço no sentido em que essa auto-indução acaba ela própria por viabilizar o estado psíquico pretendido – de modo a poder abrir um canal que faculte a erupção criativa. Há poetas cuja alucinação chega ao ponto de imaginarem um desastre pessoal preventivo de forma a experimentarem um dado estado melancólico onde incubam a verve que procuram. Nesse aspecto tudo é cómico e devasso. Certamente me incluo neste grupo.  

Tentemos fazer uma pergunta que opere um zoom sobre um poema deste seu último livro. Esse poema chama-se "Passageiro Frequente" (que é também o título do livro). Aí encontramos qualquer coisa que não é habitual na sua poesia e a que poderíamos chamar "imaginação sociológica". Digamos que este seu "passageiro frequente" surge como que caracterizado socialmente. E então começamos a perceber (mas talvez neste livro isso seja mais evidente do que nos anteriores) que a sua poesia está impregnada de realidade social e urbana e que você também tem algo de "poeta lírico no apogeu do capitalismo". Até o spleen está lá...

Isso está de alguma forma presente no contraponto entre os poemas “Paralelepípedos espelhados”, que aponta para as catedrais monólitas e monocromáticas da City, e “Paredes de vidro”, choramingando as lágrimas de luz das catedrais góticas. Concordo com o que diz, embora me imagine mais um poeta lírico no apogeu da industrialização. Daí o spleen. Talvez isto responda com mais precisão àquilo que interiormente descreve uma boa parte do que faço. Há um lado decadentista, no sentido de final, um ruir de um certo romantismo serôdio que assiste à electrificação de tudo. Mas o meu spleen é nostálgico. Ele opera como um lamento por um não-lugar, porém não utópico, antes utópico pela sua dissolução, porventura ectópico. Quer dizer que a minha melancolia assenta as suas raízes fora do seu tempo, relativamente indiferente a desagregações contemporâneas, antes ressentindo-se ainda de desagregações antigas de edifícios idealizados. O “passageiro frequente” tem que ver com esta instância de um grau de volatilidade tão frequente que justamente pela sua frequência se torna estável. Tal como de um corpo que transita frequentemente de um lado para o outro podemos dizer que adquiriu uma certa estabilidade, como um electrão por exemplo. O tempo foi o mediador dessa passagem que se tornou estável. Este lamento é observado também na violência que é imposta a um romântico que é obrigado a assistir ao declínio do seu lirismo diante das botas lustrosas e inflexíveis do realismo capitalista, como diz.

Há um momento, em qualquer entrevista, em que temos de decidir: "vamos terminar aqui". Eis então, a última pergunta, que só é possível porque tenho agora um entendimento da sua poesia diferente daquele que tinha quando iniciámos esta troca: ela é atravessada por forças, movimentos, tropismo contraditórios. Que tempo é o dela?  E que tempo é o seu, que se define como um romântico serôdio? Eu diria que é um tard venu, alguém que não coincide exactamente com o seu século...

Precisamente. Os poetas são, aliás, seres proverbialmente estranhos ao seu mundo, ou por temporões ou por serôdios, entes deslocalizados cuja sensibilidade se manifesta na sua linguagem que é sempre expressão do seu desacordo com o século. Diria, aliás, que isso, de certo modo, é um definidor de poesia, esse linguajar estranho ao nosso mundo, quase pentecostal. O poeta, não importa qual a sua estirpe, é marcado por um sinete em brasa, por vezes encomiasticamente, por vezes depreciativamente. Essa marca aponta aquele gado como pertencendo a outras pastagens. As pastagens são linguísticas. Quando se diz de alguém, ainda que derrogatoriamente, que “é um poeta” ou que teve uma saída à “poeta”, fala-se de linguagem e do efeito de frases e do que as frases podem fazer por nós e pelo nosso conceito de mundo, ou seja, fazem coisas que a linguagem quotidiana não é capaz de fazer. Há frases ou versos que devem ser apreciados como o vinho. Claro que há versos que são maus vinhos. Mas não queria evitar a pergunta, antes dizer que não tenho a certeza de que o tempo da minha poesia seja o meu. Por vezes pareço habitar numa região lógica pouco compatível com aquilo que faço nas regiões das musas. Dizer que regiões são essas, a que tempo pertencem, di-lo-á o carbono 14 exegético que deve ser ocupação de quem me lê. Mas certamente será arriscado situarem-me. Em todo o caso, a vaga personagem de “Passageiro frequente” é “tardiamente chegado”. Esse tard venu não é tão visível ainda neste livro. Talvez se surpreenda aqui com mais facilidade por uma questão de conseguirmos reconhecer mais facilmente um ethos deslocado num enunciado moderno ou contemporâneo. Talvez o próximo livro – novamente formalmente preso em cápsulas de sonetos – possa clarificar ou pulverizar ainda mais esta questão de identidade. 

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