quinta-feira, janeiro 09, 2014


A rua era garganta. Voz de acordeão cego. Banco desdobrável para não se fazer esperar demasiado tempo à hora da partida. À entrada do bazar, de música alinhavada ao sobretudo preto, o velho usava de uma cegueira quase branca, quase azul, exposta à via pública. No pulso esquerdo, um cordão pintado de verde ligava-o ao pescoço de um vadio de pêlo ralo que sabia da música pela vibração do fio ao traduzir o movimento dos dedos do seu senhor sobre as teclas. Encontrado, não era cão salvo, antes cão lata de metal, membro indispensável dessa sociedade que só o acaso poderia ter juntado.

Ali, estrategicamente estabelecidos, eram alvo da obrigatoriedade moral das mães diante dos seus filhos que diziam ver nuvens nos olhos do acordeonista que só agradecia ao ouvir o toque da moeda no fundo da lata. De cabeça encostada a um cano de queda, tocava de olhos bem abertos para o topo das clarabóias que do outro lado da praça existiam. Onde, ainda hoje, se vêem os vestígios coloridos das vidraças partidas pelos pássaros que, por elas atraídas, se lançavam em voo cego. Só o cão os teria pressentido caso soubesse olhar um som mais forte que o do pulso que guiava. Enquanto o seu dono, nuvem em céu aberto, dava música ao suicídio daquelas asas que, parece-me agora, deram altura à minha infância de rua.

- Beatriz Hierro Lopes

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