segunda-feira, janeiro 13, 2014


VERGONHA E AUTO-CENSURA


Em momentos excepcionalmente favoráveis ao apelo à dramatização e ao olhar que se satizfaz de maneira ambígua e cretina na sua própria emoção, as televisões mostram a sua face mais abjecta: é quando tudo fazem para induzir as ditaduras do coração, porque esse é o seu alimento preferido e aquele que lhes permite exibir, na mais larga escala, o seu poder. Elas conseguem transformar um sentimento de luto num objecto de repulsa que nos faz desviar o olhar, não por piedade, mas porque uma violência enorme é exercida sobre nós: a violência do despudor. A violência é diária (e tanto maior quanto já não basta evitarmos o ecrã para nos subtrairmos aos seus efeitos) mas tem evidentemente os seus picos. Pela morte de Eusébio, as televisões subiram a um desses picos já conhecidos e mostraram, mais uma vez, a violência que são capazes de exercer sobre a nossa vergonha. A vergonha, cuja relação com a culpa foi estabelecida pela psicanálise freudiana, é o índice de uma intolerável proximidade de alguém, que é sempre outro, por mais familiar que seja, em relação à intimidade do Eu: é um mal-estar perante o sentimento do Eu mais íntimo. Sentimos vergonha por ouvir os relatos, os comentários e as reportagens dos jornalistas porque há algo em nós que se sente ameaçado, desnudado, com tais palavras e atitudes. Sentimos vergonha quando um jornalista se aproxima de alguém que exibe ostensivamente o seu luto e a sua emoção e lhe pergunta: “O que é que sente neste momento?”. A vergonha que sentimos significa que nos queremos subtrair e distanciar - sem conseguirmos impedir que algo ali nos afecte - de modo a conquistarmos um lugar completamente seguro, de onde pudéssemos olhar o espectáculo com total indiferença. É por isso que somos expostos a uma “vergonha alheia”, a vergonha que se sente por nos colocarmos, mesmo contra a nossa vontade, no lugar de outrem que não é permeável a um tal sentimento. No exemplo citado, sentimos vergonha tanto pelo jornalista que faz a pergunta como pela sua vítima, que se apresta a responder sem o insultar. Como o tom e a lógica da abolição da vergonha são a regra das emissões especiais da televisão em momentos como o desta semana, devemos perguntar a razão por que tal acontece. Não podemos partir do princípio os jornalistas que perguntam a elementos do “povo” da televisão - que passou também a reivindicar uma das muitas definições da ideia de povo: o povo como audiência - o que é que eles sentem num momento de comoção colectiva são todos estúpidos e coincidem exactamente com o papel que estão ali a desempenhar. Mas se não é plausível que sejam todos estúpidos e falhos de vergonha, então temos de admitir que estão a exercer uma violência enorme sobre si próprios para garantir o emprego. A que ordens obedecem, então? Quem lhes retira toda a autonomia e os coloca a fazer algo relativamente ao qual eles deviam poder declarar-se objectores de consciência? Não é fácil, para quem está de fora, saber como se passam as coisas porque a violência simbólica de que estamos aqui a falar (exercida sobre os espectadores, sobre as pessoas apanhados na rua pelas equipas de reportagem e sobre os próprios jornalistas) é uma violência que se exerce com a cumplicidade tácita daqueles que a sofrem. E tanto os que a sofrem como os que a exercem nem sempre se dão conta da violência que estão a exercer e a sofrer. É por isso que não há nada mais pernicioso e impossível de combater, no jornalismo, do que a auto-censura. 


 - António Guerreiro
in Ípsilon (10.01.2014)  

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