domingo, dezembro 29, 2013


AVALIAR E PUNIR

 

Do enunciado da prova de avaliação dos professores, dir-se-á que é estúpido, humilhante, testemunho de infantilização; dir-se-á ainda que não se consegue perceber o que tal prova pretende avaliar. São críticas justas, mas não chegam ao fundo da questão. É preciso perceber o que está no princípio, isto é, o regime de verdade da avaliação – esse novo dispositivo que mostra que a verdadeira arte política do Estado é a estatística. A avaliação apresenta-se com roupagens de ciência, mas é uma ideologia e uma prática de aparelho; diz que os seus instrumentos de medição são factores de legitimidade e de contínuo melhoramento, mas a única racionalidade que ela serve é puramente gestionária; justifica-se através de um discurso que tem uma lógica interna para ser seguida literalmente, mas é uma retórica; parece emanar de um círculo de sábios, mas “é o que, no mundo contemporâneo, mais se assemelha a uma seita”, como diz um importante sociólogo italiano, Alessando Dal Lago. Que há qualquer coisa de místico, ou até de mistagógico, na avaliação, é algo que Nuno Crato, mais do que qualquer outro membro da seita, nos fez perceber. Desde o início que os seus actos de governação, sejam eles dirigidos aos professores ou aos estudantes, se situam no paradigma da avaliação. Melhor dizendo: no dogma da avaliação. O sociólogo italiano acima citado, da Universidade de Trieste, mostra como a ideologia da avaliação tem provocado uma degradação da investigação e do ensino na universidade italiana (mas o modelo é o mesmo em toda a Europa) e, em nome da meritocracia, graças ao método de revelação do mérito através de medições objectivas, conseguiu-se instaurar a peggiocrazia, o poder dos piores e da standardização. Fazendo da avaliação o seu significante-mestre, Nuno Crato é o maior sofista deste governo. A sua simples presença já passou a ter o efeito de avaliação de todos os seus colegas: uma equipa de amadores. Ele chega sempre com uma voz mendicante e um sorriso poderoso de impostura, com todo o aparelho de Estado atrás dele, a prometer que, se aceitarmos as suas operações, iremos ver como tudo vai brilhar, tornar-se rutilante. Não se esperaria, é certo, que ele viesse dizer, citando Freud, que ensinar faz parte daquelas experiências que podem ser caracterizadas como impossíveis, mas não deveria fazer do simples facto de avaliar o alfa e o ómega da solução para a escola. Uma prova como aquela a que o seu ministério submeteu os professores só confirma que a avaliação, tal como ela é praticada, é um dispositivo de exterioridade, completamente estranho à substância, ao saber a transmitir e aos problemas do ensino. Crato escusava de mostrar tão claramente, como tem mostrado, que pretende instaurar um regime de subordinação injusta, onde a brutalidade das relações se tornou a regra: entre alunos, entre alunos e professores, entre professores e pais. Todos são apanhados numa mecânica da subordinação recíproca. Ou, mais nitidamente, de domesticação. Não se trata de tomar como um dado – sempre falso e demagógico – que os professores são todos competentes e sabedores. Mas é a escola, no seu todo, que está a ser minada. Onde e como se aprende a ensinar, de que modo acontece – se acontece – o encontro do professor com a “impossibilidade” que caracteriza todo o ensino: são perguntas completamente destituídas de interesse para a lógica do avaliar, como Crato a tem entendido, hoje dominante e microfisicamente difundida, com dois rostos: um, por assim dizer, apresentável. E outro, bastante menos apresentável, que significa simplesmente, controlar e punir.  


 - António Guerreiro
in Ípsilon (27.12.2013)   

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