segunda-feira, dezembro 02, 2013

AS PALAVRAS E A VIDA




Pega-se na História da Literatura Portuguesa. Está cheia de autores talentosos com a vida desgraçada. De Camões e Gomes Leal a morrerem de fome. De suicidas como Camilo, Antero e Florbela. Dos que se retiram amargurados da capital, Sá de Miranda e Herculano. E dos presos por isto ou por aquilo, como Bocage, os degredados, como Correia Garção. E os exilados, sejam Filinto Elísio, a Marquesa de Alorna, Jaime Cortesão e Casais Monteiro, como há os emigrados por diferentes e nem sempre agradáveis razões, de Pessanha a Rodrigues Miguéis ou Jorge de Sena. E as vítimas da Inquisição: Damião de Góis e Anastácio da Cunha, e os condenados à fogueira, como António José da Silva. Os jovens doentes que morreram demasiado cedo: António Nobre e António Maria Lisboa. E os do manicómio: Ângelo de Lima e António Gancho. Tudo somado, é um rol considerável de talentos a quem a vida, a sociedade ou o poder mostraram os dentes e morderam a sério.
Mas o mais caricato é que durante anos as selectas literárias e outros manuais escolares e uma certa crítica professoral bem instalada promoveram as desgraças do escritor como uma componente do talento, como se a ressurreição e a glória fossem justificadas pelo pathos e pela segregação por onde o escritor obrigatoriamente teria de passar. É o mito do escritor ou do artista desgraçados, como se a tragédia lhes aguçasse o engenho, não faltando quem estrategicamente proponha bolsas de fome como estímulo da criatividade. Habituou-se assim este país a tomar as lágrimas e a infelicidade de muitos Camões para bebê-las placidamente em pátrias liturgias.
Na realidade, para além duns empregos numas bibliotecas, uns lugares de professor e depois uns nomes de ruas ou de escolas, nunca ninguém deu nada aos nossos escritores. Pelo contrário. Há muitos casos em que foram os próprios a custear a edição dos seus livros, mesmo que tenham saído com chancela editorial. Pascoaes nunca recebeu um tostão de direitos pelas dezenas de milhares de livros vendidos. Foi Eugénio de Andrade quem pagou com o seu salário de emprego nos serviços sociais a impressão de Corpo Visível de Mário Cesariny, nos idos de cinquenta. E a primeira edição de Clepsidra? E as edições de Cinatti? E Pessoa, que ganhou ele com os seus livros? E as Edições Contraponto de Luiz Pacheco? Quantos escritores não se reuniram para custear a edição de outros escritores, como A Antologia em 58 ou os Cadernos de Poesia, as revistas literárias, etc.? Foram quase sempre os autores muito generosamente a dar, além do seu talento, os meios de conseguir levá-lo a um país insensível e tantas vezes bronco que nunca lhes agradeceu. E que aprendeu a ler pelos seus textos. Continua a ler gratuitamente os livros deles nas bibliotecas. Escuta-os em debates, em recitais, em entrevistas ou conferências. Quase sempre ignorando que ninguém lhes paga o trabalho intelectual e a permanente disponibilidade. Os pintores, os arquitectos ou os cineastas, mal ou bem, lá vão recebendo conforme as exposições ou as encomendas. E os escritores? Medite. Há cerca de uma década a SEC criou umas mensalidades miseráveis ao nível do salário mínimo, atribuídas a meia dúzia de escritores aos quais era reconhecido «mérito cultural». Eram, e ainda são, subsídios de valor ridículo, pois excluem à partida uma qualquer outra fonte de rendimento ou posse de bens, isto é, exige-se a pobreza quase absoluta. Ora, apesar disso, já se lêem na imprensa imprecações contra os que têm a mania do subsídio. «Contra os dependentes do Estado», «Os da esmola». E, entre outros mimos do género, cresce a suspeita. E avançam nomes, pondo mesmo em causa a sua independência criativa. Se não conhecesse algumas repercussões desagradáveis nos visados, este texto nem valeria a pena. Mas recordo, entre outros casos, a tristeza de Natália Correia ante este tipo de notícias. Trata-se, além do mais, de uma situação absolutamente injusta em que os papéis são abjectamente invertidos. Mas, quem deve a quem? Façam, por favor, algumas contas. Comecem pelos textos dos livros escolares, dos pontos dos exames e avaliação, nas antologias (algumas editadas pelo governo), passem pelas fotocópias, pelas palestras, congressos, pelos livros de «depósito legal», já para não falar do mais importante, ou seja, deste impensável trabalho de entretecimento da alma de um povo que tanto passa pelas palavras dos poetas e dos escritores. Valha-nos Deus. Como uma nuvem escura tão tecnocrática vai toldando a magnificência dos dias. Como temos de continuar a ouvir aberrações como «Uma imagem vale por mil palavras»! E depois? Depois, é como diz Cesariny no poema «Um canto telegráfico»: «Merecemos o nosso passo de bichos do dilúvio / merecemos que nos ceguem todos os dias / merecemos estar sozinhos rodeados de prédios / merecemos ter connosco toda a vontade / fim princípio moleza de costumes / assassinatos história das basílicas / e até porque não dominicais / (...) / e como são as palavras para dizer que te amo...» Já que se rouba tão despudoradamente e sem grandes contrapartidas o saber e as palavras aos escritores, não se deve pretender também subtrair-lhes a vida. Parece claro, não parece?


- Manuel Hermínio Monteiro
in Ler / Livros & Leitores, n.º 23, Verão 1993.

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