segunda-feira, novembro 18, 2013


PORTUGUÊS, LÍNGUA ESTRANGEIRA


Agastada com o aumento significativo de obras literárias nos novos programas de Português do Secundário, a presidente da Associação de Professores dessa disciplina lamentou publicamente a inclusão “ de um sem número de autores e de obras literárias”, fazendo do Português uma “disciplina de literatura portuguesa”. Esta afirmação insere-se nas circunstâncias de uma guerra antiga, tendo a literatura como um dos motivos das hostilidades, e que, em termos muito breves e simplificados, pode ser assim explicada: quando foi diagnosticada, em todos os níveis do ensino, mesmo no universitário, uma grave crise da literacia, a preocupação da escola em fornecer competências linguísticas mínimas (isto é, saber escrever e compreender textos pragmáticos) sobrepôs-se à iniciação canónica na res literaria. E os textos literários perderam, nos programas, os privilégios de outrora, cederam espaço a outras tipologias de textos (jornalísticos, informativos, publicitários, etc.). A operação não consistiu apenas em admitir no cânone escolar outros discursos que dele estavam tradicionalmente excluídos. Tratou-se de um parti pris pedagógico, segundo o qual os textos literários, considerados como um desvio à norma, constituem um empecilho para o ensino da língua. Voltada para as exigências da literacia, a disciplina de Português, língua materna, passou a ser ensinado quase como se fosse uma língua estrangeira. Por exigências da literacia não devemos entender apenas a preocupação com as graves falhas nas competências línguísticas dos alunos, no domínio da escrita e da compreensão. Trata-se de algo muito mais complexo, quase uma ideologia, que tem a ver com uma nova racionalidade comunicativa que substituiu uma antiga ideia de cultura e está relacionado com o que um universitário norte-americano chamou “nova literacia vocacionalista”, isto é, a aquisição de uma literacia restrita que fornece competências num código específico. A guerra actualizada nas declarações recentes da presidente da Associação de Professores de Português é aquela entre os que acham que os textos literários são obstáculos na aprendizagem e no treino a que os alunos devem ser submetidos e os que acham que nenhum texto literário é um empecilho, nada impede e muito fornece: quem aprender a ler um soneto de Camões é também capaz de consultar um horário de comboios (exemplo que traz à memória um poema de Enzensberger que começa assim: “Não leias odes, meu filho, lê os horários,/ são mais exactos.”). Em termos gerais e esquemáticos, eis uma longa história cujo desenvolvimento mais recente é uma vitória de quem se bateu pela revalorização da literatura nos programas do Secundário. Mas tal história é muito mais complexa: envolve corporações, grupos de influência, é marcada por uma separação, ou mesmo uma hostilidade, entre os estudos literários e a linguística (e tão bem que se davam, que belas núpcias celebraram!). E tem como horizonte a questão do futuro das Humanidades: haverá lugar para o estudo da literatura, da arte, da filosofia, quando se chegou ao completo domínio do “novo vocacionalismo” pragmático, quando a ideologia da avaliação obriga a que a escola - como se pode ver pelo modelo de exames e pelas grelhas de correcção - só reconheça o saber objectivamente mensurável? Em última instância, a guerra de que aqui falámos é uma prova de que a própria escola já não sabe muito bem o que fazer com a literatura nem com a sua disciplina nacional: o Português. “Não leias odes, meu filho…”

 - António Guerreiro
in Ípsilon (15.11.2013)  

Sem comentários: