terça-feira, novembro 05, 2013




O MONOLINGUISMO DO OUTRO: SOBRE “CORAÇÃO TÃO BRANCO” DE JAVIER MARÍAS


Somos mais do que aquilo que fazemos. A nossa vida comporta também aquilo em que pensamos, que conjecturamos – e por vezes não se concretiza. Esboços de vida, caminhos não trilhados, diagramas existenciais jamais postos à prova, suspeitas por apurar. Parece que habitamos com mais força uma paisagem interior do que o próprio espaço físico em que o nosso corpo está, espaço esse apreendido como fluxo cosmológico e social que acontece apesar de nós. Um trabalho que não aceitámos, uma pessoa com quem acabámos por não ficar, outra que, por melindre, não chegámos a conhecer, um café que não tomámos, uma língua que não estudámos – em suma, vidas que não vivemos, embora nos definam. Todas essas reflexões, suspeitas, derivas, fantasias são tempo – e nós somos, como disse Proust, seres cheios de tempo. Tudo isto me é sugerido pela leitura de “Coração tão branco”, de Javier Marías, romance publicado em 1992, em Espanha, e agora republicado em português, desta feita com a chancela da Alfaguara (que, no ano passado, havia editado outrossim “Os enamoramentos”), depois de a Relógio d’Água o ter publicado em 1994.
Javier Marías publicou romances, contos, ensaios e crónicas. É um escritor renomado e abundantemente premiado. Será o bastante acrescentar que o seu nome vem sendo considerado desde há uns anos a esta parte como o próximo galardoado com o Prémio Nobel da Literatura (embora ressalve que nem esta nem qualquer outra distinção são índices inequívocos de qualidade do autor que as ganha – nem do que as não ganham). Traduziu Sterne, Yeats, Wallace Stevens, Nabokov, Auden, Ashbery, Faulkner. Publica semanalmente a sua crónica no “El País”.
Voltando à vaca fria, em Javier Marías o fluxo da acção por vezes tem que esperar. A estrutura narrativa de “Coração tão branco” assemelha-se à de romances policiais, assente na ocultação da causa de que se conhecem os efeitos, alimentando-se um raciocínio abdutivo, o que adensa o suspense. Apesar disso, não é preenchido o tempo que vai do efeito à causa com sucessivas acções secundárias de cortar a respiração, como é usual em «bestas céleres» (evocando Alexandre O’Neill). É preenchido, ao invés, com digressões do narrador sobre vários temas, e com descrições precisas e acesas; algumas, como as que compõem o retrato de Rank, memoráveis – repletas de símiles, que recrudescem o sensível das imagens: «O que mais chamava a atenção no seu rosto eram os olhos extremamente vivos, deslumbrantes às vezes, devido à devoção e à firmeza com que eram capazes de olhar, como se o que estivessem a ver em cada momento fossem de uma importância extrema, digno não apenas de ser visto, mas também estudado, de ser observado de forma exclusiva [...] Aqueles olhos adulavam tudo o que contemplavam. Aqueles olhos eram de uma cor muito clara, embora não tivessem nem uma gota de azul, de um castanho tão pálido que, à força da palidez, adquiriam nitidez e brilho, quase da cor do vinho branco quando o vinho não é novo e a luz os iluminava, à sombra ou de noite, quase da cor do vinagre, olhos de líquido, de rapace muito mais que de gato, que são os animais que melhor admitem essa gama de cores. Todavia, por outro lado, os olhos dele não tinham o estatismo ou a perplexidade desses olhares, pois eram móveis e cintilantes [...]” (pp. 98-99). A descrição dos olhos de Ranz, pai de Juan, continuará. Javier Marías tem o dom de dar a cada palavra o espaço da sua ressonância; a cada tensão, o tempo do seu desenvolvimento. Uma atenção aos detalhes que nos evoca por vezes o hiper-realismo.
Eis alguns dos temas sobre os quais o narrador, protagonista do romance, se debruça: o sentido do casamento, a volubilidade da memória, a (im)possibilidade da tradução (em sentido estrito e não só), a capacidade de as palavras fazerem coisas. É sobretudo graças a estas digressões que o livro, depois de lido, nos acompanhará por uns dias. Importa não somente o engenho da narração – o qual os autores de origem anglo-saxónica não raro possuem – como o que está a par dessa narração (os detalhes descritivos, as inferências, a densidade filosófica). Isto é, o prazer da leitura não provém apenas do retardamento da obtenção do objecto de desejo, da expectativa do fim da angústia provocada por não se saber ainda o final da história, porém de nos reconhecermos no texto – pois tudo é comparável a tudo, uma história agora vivida tem semelhanças de família com outras do passado, vividas por outros, tudo se reflecte em tudo, a vida é uma roda de repetições, ao ponto de nos ser impossível discernir absolutamente o que nos contaram do que lemos ou vimos em algum filme ou na televisão e mesmo daquilo que vivemos. Neste romance, até está por apurar a causa dum suicídio duma antiga mulher do pai (Ranz) do protagonista (Juan), que se matara, de forma aparentemente inadvertida, com um tiro no coração. A descoberta dessa causa nem interessa particularmente ao filho, nem o leitor se sente impelido a conhecê-la. Há, da parte da mulher de Juan, Luisa, um desejo de saber. E é só. Talvez esta arqueologia familiar venha apaziguar os «pressentimentos catastróficos» (p. 24) que o protagonista tem a respeito do seu casamento. Talvez procuremos histórias para não pensarmos nas nossas – o que nos dá tempo e distância para pensá-las. Talvez desta forma não haja, depois do casamento de Juan e Luisa, somente «futuro concreto» (idem) – o tempo que o corpo durar, a repetição circular do vivido – mas também «futuro abstracto» (ibidem) – a imprevisibilidade que nos garante, no fundo, liberdade. Ou seja, a resolução da história familiar pode bem ajudar o protagonista a deixar de conceber o seu casamento como o fim dalguma coisa, antes como tarefa a fazer. A explicação da causa do suicídio significará pouco em si mesma para o casal; importarão, antes, as inferências, relevantes para o futuro do casamento, que se possam fazer a partir dela. Uma dessas inferências está relacionada com o poder destrutivo da paixão: quando levada a sério, pode desencadear efeitos imprevisíveis: «Nunca mais na vida tornei a ser sério ou, pelo menos, fiz o possível por isso» (p. 310), disse Ranz. Vida e paixão não são compossíveis. Daí que a posterior relação com Juana – mãe do protagonista – tenha sido diferente: «Amei-a com mais cautela, com mais parcimónia, não com tanta insistência, de forma mais contemplativa, [...] mais passiva». (p. 307)
Por fim, uma breve explicação do título, cujo intertexto é “Macbeth” de Shakespeare (embora, como o autor, numa entrevista à “Paris Review”, assinalou, a inspiração tivesse provindo do filme homónimo de Orson Welles). Quando Lady Macbeth depara com o crime perpetrado pelo marido, diz-lhe algo enigmaticamente: «My hands are of your color; but I shame / To wear a heart so white.» Nesta frase, a primeira proposição assinala a partilha da culpa pelo crime (‘as minhas mãos são da cor das vossas’), enquanto a segunda parece contradizer a primeira (‘mas envergonho-me de carregar um coração tão branco’), embora aponte, se lermos a comparação de forma reversível, para uma inocência partilhada. E de que depende essa inocência, a nossa inocência? Sobretudo da capacidade de guardar segredos, como aconselha Ranz: «Vês, a nossa vida não depende dos nossos actos, do que cada um de nós faz, mas do que cada um de nós sabe, do que sabe que fez.» (p. 318) Por isso, podemos, com o narrador, concluir que «a frágil roda do mundo é empurrada por desmemoriados que ouvem, e vêem, e sabem o que não se diz nem tem lugar, nem é cognoscível nem comprovável.» (p. 41)

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