sábado, novembro 09, 2013




A BANALIDADE DO BEM

A utilização, a torto e a direito, da “banalidade do mal” não é de agora. Mas o filme de Margarethe von Trotta sobre Hannah Arendt (e, neste caso, trata-se de facto de um filme em que o “sobre” se torna óbvio, daí advêm algumas das suas fraquezas) veio fazer com que as ocorrências da expressão se disseminassem. Aparentemente, é como se essa categoria do mal banal, tão polémica e tão incompreendida quando Hannah Arendt a forjou, na reportagem que fez do julgamento de Eichmann, se tivesse tornado de uma evidência que entra pelos olhos dentro. Para entendê-la, parece que já não é preciso opô-la à categoria kantiana de “mal radical” e perceber que a autora, no seu “report”, descobriu    ouvindo e olhando Eichmann – um mal muito mais difícil de pensar do que aquele que todos pensavam e queriam que fosse. Não se tratava, afinal, de um mal grandioso, profundo e com um fundamento metafísico (e é neste sentido que ele não é radical, não vai às raízes), mas de um mal banal. Se esta palavra deu origem a tantos equívocos e contestações foi porque os leitores da reportagem de Hannah Arendt não perceberam que ela não estava a utilizar a palavra “banal” no sentido de comum, vulgar, que sucede com frequência: ser banal não anula a sua condição de extremo – extremo, mas não radical. Sujeita a uma repetição tão insistente, transformada numa expressão que “pegou” e que, por isso, como dizia Barthes dos estereótipos, tem uma “nauseabunda impossibilidade de morrer”, “a banalidade do mal” ganhou um outro poder: o de nos lembrar que existe uma banalidade do bem. O escritor alemão Martin Walser lembrou-o, aliás, no discurso que proferiu em 1998, quando lhe foi entregue o Prémio da Paz dos Livreiros Alemães. Nesse discurso, que causou uma guerra civil de palavras, mais do que uma polémica, Martin Walser entendeu insurgir-se contra aquilo que ele disse ser uma “instrumentalização da vergonha alemã para fins actuais”, através da “monumentalização da culpa nacional”. Referia-se ele, deste modo, à multiplicação de grandiosos memoriais do Holocausto, nomeadamente aquele que tinha sido decidido erigir ao lado da Porta de Brandenburgo, em Berlim, da autoria do arquitecto americano Perter Eisenman (inaugurado em 2005). A banalidade do bem, fora desse contexto delicado e polémico, serve para nos fazer perceber que há uma ideologia ética contemporânea altamente nefasta que faz parte do arsenal dogmático do kitsch e que tanto foi, no passado, responsável por uma estetização da política, como promove hoje aquele “acordo categórico com o ser” de que falava Kundera, ao definir o kitsch político e ideológico. A banalidade do bem – o consenso ético que ele implica – é uma espécie de ideal estético de todos os políticos, de todos os partidos, de todos os movimentos políticos. Aparentemente, é como se a capacidade de identificar todo o Mal a priori se tivesse tornado comum, e por isso o juízo moral tende a substituir o juízo político (veja-se como a discussão política resvalou completamente para um vocabulário que é do campo da moral) e procede a uma despolitização generalizada. O Parlamento tornou-se, desde há muito tempo, num palco onde se representa a vacuidade da banalidade do bem. Paradoxalmente, esse bem banal caracteriza-se pela obliteração da consciência do mal e, no plano dos instrumentos discursivos, desconhece a ironia e a distância crítica da ordem da metalinguagem. Em suma, é uma política – se tal nome merece – que desconhece a sua matéria primeira: as palavras. E isto é exasperante, dogmático, sem saída.

 - António Guerreiro
in Ípsilon (8.11.2013)  

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