terça-feira, outubro 29, 2013

Uma história


I

Exausto, translúcido,
Recolheu cada pegada,
Cada planeta abandonado,
Outro era soluço imprevisto.

Um dia, irremediável como linfa,
Sujeito ao desabrigo animal
De uma evidência,
Decidiu-se à condição de anjo.

Subiu dez andares,
Cada um axioma perdulário,
Cada um outrora rosto;
Depois, ave fingida,
De cima para baixo, depois.


II

Dizia que a sua vida era uma lâmpada
De agonia fútil;
Cego como um anjo, tinha um modo fácil
De estar em toda a parte
Entre café e genebra.
Era conhecido o terror divino
Que o tomava, de baixo para cima,
Quando as luzes eram antecipação
Da madrugada.
Repetia a quem o escutasse:

«Sei que não há acordo entre céu-da-boca
E fulgor da trovoada ausente;
Sei também que não posso morrer
Contemporâneo de mim
Porque não há mãos anónimas.

O amor que julgámos comum
É uma alquebrada mania,
Que antecede a doença de estarmos vivos;
Como gonorreia de um crime pálido,
Como se entre pernas fosse maior
A distância entre mãos e mapa.

Diz-lhe, se a tornares a ver,
Quero o meu nome de volta;
Se agora estou interdito
É por imóvel oráculo, calças em baixo;
E se nenhuma intuição me ocorre,
É por a terra ser inclinada
Em direcção ao céu».


III

Um trompete, duas ostras no frigorífico
É tudo o que restou.
O comboio passa e a noite
Só em pensamento chegará.
Por ora reclino-me sobre ciosa sede,
À beira de um lago de porcelana.
Antes adorasse um ícone.
Mas neste jeito irreprimível
De dizer até logo
(agonia oca primeiro,
Gaveta esquecida depois),
Um retrato não é silêncio consentido,
Como um poema não é a voz de quem lê.

Dizendo ia:
«Fica comigo,
Dá-me com um pé acidental na cara,
Nódoa insolúvel que jamais esqueça:
É breve o capricho de uma palavra estrangeira
E mais breve a eternidade que me foi dada.

Fala comigo (repetia)
Como quando disseste adeus de uma cortina
Apenso à biografia recém chegada.
Amanhã, se tudo correr bem,
Serei modo eclesiástico de descer à terra».

Depois começou a chover
E um cenário piedoso ergueu-se
À legenda,
Tijoleira sobreposta à graça dos sentidos.

Ia dizendo:
«Fosse eu, sendo tu (coisas assim),
Em sonos rápidos, idênticas vigílias,
Como se fosse homem por igual;
O desalinho do céu é imitação da terra
E, se hoje sou invisível por procuração,
Nada mais resta que este postigo,
Desabrigado mijo, a horas mortas.

Anterior à escolha dos atalhos,
Onde uma mecha de cabelo
É um Inverno antecipado,
Esquece que tudo é um instante:
Ou estalo de pálpebra
No horizonte;
Que não tenho cinquenta anos,
Mas uma forma mesquinha
De parecer que sim.
Que não é tarde. Depois, talvez. Ou antes ainda».

- Nunes da Rocha
in Óculos Sujos, Fígado Gordo, & etc

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