quarta-feira, outubro 23, 2013

Seja um fruto o teu reino


Seja um fruto o teu reino, Senhor....
Convergem os seus gomos, o sumo
do seu mel e a nervura própria
do seu idêntico desenho
em direcção ao centro onde reina
uma ordem que te pertence
pela graça e desígnio
do Deus dos exércitos.
Só a ti foi concedido o peso
de tão vasta tarefa, só em ti
gravita a desolada gestão
de um mundo que te nomeia
como o mais certo fiel do seu destino.
Seja um fruto o teu reino. Protegido,
cercado no estrito limite
da sua casca dourada e impenetrável.
É assim o teu desejo de como se mostre
o teu reino: estranho ao comércio infame
com os marcados pelo demónio
da confusão com o seu lacre de lodo,
com os manchados pelo tributo
do efémero afã da razão.
Seja um fruto em plenitude o teu reino
na estação das suas mais puras essências
destiladas durante séculos no augusto
sangue dos teus antepassados,
confiado às tuas pálidas mãos lusitanas
para que se cumpra, por fim, a promessa
do Apóstolo que repousa ao abrigo
da tua coroa três vezes santa.
Por isso as tuas palavras impiedosas:
«Prefiro não reinar do que reinar sobre hereges.»
Seja um fruto amadurecido em milénios
de migrações e regressos,
de fundações e cegas teogonias,
de lutas entre irmãos,
de façanhas no abismo do oceano,
de incêndios e massacres
e reis desventurados ou gastos
pelo febre dos santos
ou pela minuciosa ruína do saber;
seja esse fruto o que sonhas para esse reino
e nesse sonho a tua vida se consome
para glória de Deus e perante a estulta
aversão dos teus próximos que, como sempre,
nada souberam entender dessas empresas.


- Álvaro Mutis
(tradução de Nuno Júdice)
 in Os Versos do Navegante, Assírio & Alvim

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