segunda-feira, outubro 14, 2013

O poeta come amendoim


Noites pesadas de cheiros e calores amontoados...
Foi no sol que por todo o sítio do Brasil
Andou marcando de moreno os brasileiros.

Estou pensando nos tempos de antes de eu nascer...

A noite era para descansar. As gargalhadas brancas dos mulatos...
Silêncio! O imperador medita os seus versinhos.
Os Caramurus conspiram à sombra das mangueiras ovais.
Só o murmurejo dos cre'm-deus-padre irmanava os homens de meus país...
Duma feita os canhamboras perceberam que não tinha mais escravos,
Por causa disso muita virgem-do-rosário se perdeu...

Porém o desastre verdadeiro foi embonecar esta República temporã.
A gente inda não sabia se governar...
Progredir, progredimos um tiquinho
Que o progresso também é uma fatalidade...
Será o que Nosso Senhor quiser!...

Estou com desejos de desastres...
Com desejo do Amazonas e dos ventos muriçocas
Se encostando na canjerana dos batentes...
Tenho desejo de violas e solidões sem sentido...
Tenho desejos de gemer e de morrer...

Brasil...
Mastigado na gostosura quente do amendoim...
Falado numa língua curumim
De palavras incertas num remeleixo melado melancólico...
Saem lentas frescas trituradas pelos meus dentes bons...
Molham meus beiços que dão beijos alastrados
E depois remurmuram sem malícia as rezas bem nascidas...

Brasil amado não porque seja minha pátria,
Pátria é acaso de migrações e do pão-nosso onde Deus der...
Brasil que eu amo porque é o ritmo no meu braço aventuroso,
O gosto dos meus descansos,
O balanço das minhas cantigas amores e danças.
Brasil que eu sou porque é a minha expressão muito engraçada,
Porque é o meu sentimento pachorrento,
Porque é o meu jeito de ganhar dinheiro, de comer e de dormir.

- Mário de Andrade

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