segunda-feira, outubro 21, 2013


A PÓS-LITERATURA


À maneira de Valéry, que em 1919, em “A Crise do Espírito”, começava por dizer que “nós, civlizações, sabemos agora que somos mortais”, poderíamos hoje dizer que essa longa e lenta elaboração a que chamamos literatura também é mortal: está brutalmente ameaçada e em vias de desaparecer. Digamos, com um pouco mais de rigor: não é plausível que deixe de haver escritores e textos literários, mas o que foi construído ao longo de quatro séculos – isto é, a possibilidade de uma literatura autónoma, com as suas instâncias próprias e os seus mecanismos internos de legitimação – está a extinguir-se a grande velocidade. E uma prova disso é que poucos são aqueles que, actualmente, fazendo parte do “meio” (no sentido ecológico do termo), reflectem, pelo menos publicamente, sobre a sua tarefa e as suas próprias condições de existência. Ora, a construção do espaço literário consistiu numa luta para inventar e impor as leis específicas da literatura – contra a política, contra a religião, contra uma economia da utilidade e do valor social, pela conquista do monopólio da legitimação literária. E, por isso, precisou sempre do medium da reflexão, da abertura crítica e especulativa ao que se passava no seu interior. Sem auto-reflexão, sem essa inclinação obstinada ou até obsessiva sobre si mesmo, não há espaço literário. Parece que todos nós, que participamos de uma maneira ou de outra na coisa literária e exercemos no interior dela alguma função, por mais modesta e ínfima que seja, somos compelidos a seguir em frente, a avançar sem nos determos porque há uma força anónima e poderosa que pensa por nós. E, no entanto, quando nos detemos, vemos que foi tudo pulverizado, que a autonomia já só existe praticamente em curtas margens do sistema ou para aqueles que, tendo-a conquistado noutro tempo, quando ela era ainda uma condição geral e necessária, estão em condições de mantê-la. Tornou-se assim possível assistir ao espectáculo grotesco dos escritores que, de um momento para o outro, por fadiga ou por inabilidade, são executados de maneira implacável pelos mesmos meios que antes lhes garantiram o sucesso. A maior parte daquilo que anima a “cena literária” tem, na verdade, uma condição pós-literária. Por exemplo, o pacto servil com aquilo a que chamamos romance, mas que é já só, na sua grande maioria, um género editorial (se pudessem, os editores dariam hoje o nome de romance a tudo o que publicam), é um pacto com a pós-literatura que se tornou hegemónica e vai criando o deserto à sua volta. Nada ilustra melhor esta condição pós-literária do que a passagem de uma literatura mundial a uma world fiction. A literatura mundial, a Weltliteratur, foi uma grande utopia de Goethe, que ele confiou ao seu amigo Eckermann em 1827. A filologia romântica, com a sua amplitude cosmopolita, prosseguiu-a de alguma maneira, mostrando aliás que a literatura mundial não significa o fim das literaturas nacionais. Hoje, paradoxalmente, a globalização como fenómeno editorial e comercial acabou definitivamente com a ideia de uma Weltliteratur e de uma verdadeira internacionalização da literatura. A estética “globalizada” desse romance pós-literário significa simplesmente que ele se aplica a não excluir nenhum público potencial, para que todos os leitores de tal produto – desnacionalizado, mas não no sentido de um devir cosmopolita – encontrem motivos de identificação, de fixação do gosto e de satisfação de expectativas. E aí temos, com carácter hegemónico, o maravilhoso mundo da world fiction.

- António Guerreiro
in Ípsilon (18.10.2013)  

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