sexta-feira, outubro 04, 2013


O POPULISMO SEM POVO


Quando verificamos os resultados das eleições (em geral, e não apenas das últimas), chegamos obrigatoriamente à conclusão de que essa entidade a que chamamos “povo”, nas suas decisões sensatas e racionais – e dizer isto não significa necessariamente uma identificação com o sentido do voto da maioria, tal questão é aqui irrelevante como argumento - não corresponde em nada à imagem e às representações que dele são feitas na esfera pública. Tal entidade – o povo – só existe como uma elaboração ficcional, ou, pelo menos, sob a forma de uma pluralidade de figuras que nada têm a ver umas com as outras: o “povo soberano” da democracia não é a mesma coisa que o “povo jurídico” de Kant; e ambos são diferentes do “povo trabalhador” que o movimento comunista elevou a sujeito da História; e nenhum deles se confunde com o povo definido por uma relação orgânica com o solo e o sangue (de onde advém a ideia de um “Volk”, que foi, em todo o lado, um mito nefasto e quase sempre criminoso). Não existindo o povo, existe no entanto algo que se chama “populismo”, contra o qual estamos constantemente a ser alertados. O filósofo francês Jacques Rancière mostrou, num texto intitulado “L’introuvable populisme”, que essa noção não faz mais do que construir “um povo caracterizado pela temível união de uma capacidade – o poder bruto do grande número – e de uma incapacidade – a ignorância atribuída a esse grande número”. Ora é fácil verificar que a noção de populismo diz muito acerca da sua utilização e de quem a utiliza, mas não diz nada acerca de nenhuma figura do “povo”. Veja-se, por exemplo, como os cartazes toscos e amadores de grande parte dos candidatos autárquicos – sobretudo os de fora das grandes cidades - se prestaram a um gozo generalizado por parte de certas elites urbanas que cabem, com toda a justiça, na definição que Hannah Arendt dava da forma mais comum de snobismo, na sociedade de massa: o “filisteísmo cultural cultivado”. A cultura dessas elites é a mesma que procede à intelectualização do Kitsch. Hoje, o fantasma do populismo alimenta-se de imagens e representações do povo que, à falta de outras, são aquelas criadas pela televisão. Não existe uma figura apreensível do povo como entidade, mas existe um “povo” da televisão, não apenas dos concursos e dos programas de entretenimento, mas também o dos telejornais, fetichizado pelas câmaras e pelos microfones, numa encenação que nos quer fazer crer que é a pura realidade. Trata-se de um povo postiço, que satisfaz uma forma aberrante de telegenia e só existe nos ecrãs. Os denunciadores do “populismo” não só acreditam na verdade destas representações – por mais que elas estejam constantemente a ser desmentidas - como as reforçam. Assim, o verdadeiro e nefasto populismo com que estamos confrontados é o dessas elites que reduzem o povo, primeiro, à estupidez da televisão e à cultura da sociedade de massas, e depois a uma multidão perigosa. Ora, tanto a televisão como os outros meios de difusão e socialização da cultura e do comportamento “populistas” são geridos, programados e editados por quem está sempre a acenar com o perigo do populismo. Assistimos assim a esta esquizofrenia: no mesmo jornal ou na mesma cadeia de televisão onde os directores e responsáveis não se coíbem de fazer discursos contra o populismo político, promove-se e alberga-se o mais descarado populismo cultural, que consiste em fornecer aquilo que é objecto de um consenso fabricado por quem decide o que agrada e interessa ao maior número.    

- António Guerreiro
in Ípsilon (04.10.2013) 

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