O POPULISMO SEM POVO
Quando verificamos os resultados das eleições (em geral, e
não apenas das últimas), chegamos obrigatoriamente à conclusão de que essa
entidade a que chamamos “povo”, nas suas decisões sensatas e racionais – e
dizer isto não significa necessariamente uma identificação com o sentido do
voto da maioria, tal questão é aqui irrelevante como argumento - não
corresponde em nada à imagem e às representações que dele são feitas na esfera
pública. Tal entidade – o povo – só existe como uma elaboração ficcional, ou,
pelo menos, sob a forma de uma pluralidade de figuras que nada têm a ver umas
com as outras: o “povo soberano” da democracia não é a mesma coisa que o “povo
jurídico” de Kant; e ambos são diferentes do “povo trabalhador” que o movimento
comunista elevou a sujeito da História; e nenhum deles se confunde com o povo definido
por uma relação orgânica com o solo e o sangue (de onde advém a ideia de um
“Volk”, que foi, em todo o lado, um mito nefasto e quase sempre criminoso). Não
existindo o povo, existe no entanto algo que se chama “populismo”, contra o
qual estamos constantemente a ser alertados. O filósofo francês Jacques
Rancière mostrou, num texto intitulado “L’introuvable populisme”, que essa
noção não faz mais do que construir “um povo caracterizado pela temível união
de uma capacidade – o poder bruto do grande número – e de uma incapacidade – a
ignorância atribuída a esse grande número”. Ora é fácil verificar que a noção
de populismo diz muito acerca da sua utilização e de quem a utiliza, mas não
diz nada acerca de nenhuma figura do “povo”. Veja-se, por exemplo, como os
cartazes toscos e amadores de grande parte dos candidatos autárquicos –
sobretudo os de fora das grandes cidades - se prestaram a um gozo generalizado
por parte de certas elites urbanas que cabem, com toda a justiça, na definição
que Hannah Arendt dava da forma mais comum de snobismo, na sociedade de massa:
o “filisteísmo cultural cultivado”. A cultura dessas elites é a mesma que
procede à intelectualização do Kitsch.
Hoje, o fantasma do populismo alimenta-se de imagens e representações do povo
que, à falta de outras, são aquelas criadas pela televisão. Não existe uma
figura apreensível do povo como entidade, mas existe um “povo” da televisão,
não apenas dos concursos e dos programas de entretenimento, mas também o dos
telejornais, fetichizado pelas câmaras e pelos microfones, numa encenação que nos
quer fazer crer que é a pura realidade. Trata-se de um povo postiço, que
satisfaz uma forma aberrante de telegenia e só existe nos ecrãs. Os
denunciadores do “populismo” não só acreditam na verdade destas representações
– por mais que elas estejam constantemente a ser desmentidas - como as
reforçam. Assim, o verdadeiro e nefasto populismo com que estamos confrontados
é o dessas elites que reduzem o povo, primeiro, à estupidez da televisão e à
cultura da sociedade de massas, e depois a uma multidão perigosa. Ora, tanto a
televisão como os outros meios de difusão e socialização da cultura e do comportamento
“populistas” são geridos, programados e editados por quem está sempre a acenar
com o perigo do populismo. Assistimos assim a esta esquizofrenia: no mesmo
jornal ou na mesma cadeia de televisão onde os directores e responsáveis não se coíbem de fazer discursos contra o populismo político, promove-se e alberga-se
o mais descarado populismo cultural, que consiste em fornecer aquilo que é
objecto de um consenso fabricado por quem decide o que agrada e interessa ao
maior número.
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