terça-feira, setembro 24, 2013


Parte inferior do formulárioO MESMO ARCO


Eu diria que não vejo nada e que não sei.
Algo está suspenso. A hora repousa.
Eu quero estar vivo como uma ferida, como um signo,
não mais do que um rumor de coisa nua.
Neste momento nada é confuso nem opaco.
Os labirintos são trémulos, transparentes.
Dir-se-ia que atravesso um jardim e toda a vida
repousa entre as forças de cinza
e o fulgor da chama. E adormeço
sentindo a beleza e o tempo, o mesmo arco
iluminado.


António Ramos Rosa, 'Acordes', Lisboa, Quetzal, 1989
 

 

Agripina Costa Marques, Maria Filipe Ramos Rosa, António Ramos Rosa



Parte superior do formu AQUI  MEREÇO-TE


O sabor do pão e da terra
e uma luva de orvalho na mão ligeira.
A flor fresca que respira é branca.
E corto o ar como um pão enquanto caminho entre searas.
Pertenço em cada movimento a esta terra.
O meu suor tem o gosto das ervas e das pedras.
Sorvo o silêncio visível entre as árvores.
É aqui e agora o dilatado abraço das raízes claras do sono.
Sob as pálpebras transparentes deste dia
o ar é o suspiro dos próprios lábios.
Amar aqui é amar no mar,
mas com a resistência das paredes da terra.

A mão flui liberta tão livre como o olhar.
Aqui posso estar seguro e leve no silêncio
entre calmas formas, matérias densas, raízes lentas,
ao fogo esparso que alastra no horizonte.
No meu corpo acende-se uma pequena lâmpada.
Tudo o que eu disser são os lábios da terra,
o leve martelar das línguas de água,
as feridas da seiva, o estalar das crostas,
o murmúrio do ar e do fogo sobre a terra,
o incessante alimento que percorre o meu corpo.
Aqui no grande olhar eu vejo e anuncio
as claras ervas, as pedras vivas, os pequenos animais,
os alimentos puros,
as espessas e nutritivas paredes do sono,
o teu corpo com todo o vagar da sua massa,
todo o peso das coisas e a ligeireza do ar.

Ao flexível volante trabalhado pelas seivas
a minha mão alia-se: bom dia, horizonte.

Uma saúde nova vai nascer destes ombros.
A lâmpada respira ao ritmo da terra.
Sei os caminhos de água pelas veredas,
as mãos das ervas finas embriagadas de ar,
o silêncio donde se ergue a torre do canto.

Abrem-se os novos lábios e eu mereço-te.
É este reino de insectos e de jogos,
das carícias que sabem a uma sede feliz.
Aqui entre o poço e o muro,
neste pequeno espaço de pedra cai um silêncio antigo:
uma infância inextinguível se alimenta
de uma fábula que renasce em todas as idades.
É aqui, minha filha, que dança a fada do ar
com seu brilho sedoso de erva fina
e a sua abelha silenciosa sobre a fronte.
É aqui o eterno recanto onde a água diz
a pura praia da infância.
Aqui bebe e bebe longamente
o hábito da tristeza no silêncio da vida,
aqui, ó pátria de água calada e de pão doce,
da fundura do tempo, da lonjura permanente,
aqui, bom dia, minha filha.


António Ramos Rosa, 'A Construção do Corpo', Lisboa, Portugália Editora, 1969

 

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