segunda-feira, setembro 02, 2013


MELANCOLIA E PALAVRAS VORAZES


0: tempo, dobra, tempo
Manuel António Pina citava, nas entrevistas que calhava conceder-nos, Jorge Luis Borges. E de Borges evocava com frequência as seguintes palavras: «só há dois temas: o amor e a morte»; ao que Manuel António Pina acrescentava: «e o tempo». Perspectiva optimista, pode dizer-se, esta de distinguir-se tempo e morte. Optimista sobretudo à luz de uma época – estou consciente de ser arriscado falar-se de «épocas» – que vem identificando os dois termos, o que acentua a nossa finitude e a da própria poesia apaziguada na clareira da representação e da comunicação transparente de sentido. Em Paliativos, de Fernando Pinto do Amaral, o amor, esse, comparece com mais força numa secção intimista denominada «Requiem», que se debruça nem tanto sobre o que foi vivê-lo, muito menos sobre o que é vivê-lo, mas sobre o que teria sido vivê-lo. Isto é, versa a secção sobre ruínas da história pessoal que não foi possível edificar. Dobra-se o sujeito sobre si, revelando a sombra que toda a dobra comporta: «Demasiada sombra reconheces / nisso a que chamas vida sem saber» («Insónia», p. 11). Esta poesia é definida, assim, como comunicação transparente de serviço retórico quantum satis, identificável consecutivamente com gramática, de pendor romântico e tom elegíaco, incorrendo por vezes na narratividade. Versa ela sobre a morte. Ou antes: sobre o tempo.

I: outrora, agora, morte, voz, aranha
É da relação com o tempo que trata «Outrora agora», o primeiro andamento da obra. Neste andamento e no seguinte, os poemas recebem quase sempre um título de uma palavra, geralmente um nome, não precedido por determinante, directo à essência da coisa. É a poesia habilitada a dizer o que de substantivo tenha o mundo. Já a terceira parte é constituída por uma série de poemas não intitulados, apenas numerados. Aquela citação de Pessoa (que convoca também o romance de Augusto Abelaira) delineia prontamente o horizonte de expectativas do leitor. De facto, em vários poemas desta primeira parte é rememorada a infância, ficando implícita a hipótese de (re)vivência presente da experiência passada tal qual vivida outrora, isto é, de compossibilidade de passado e presente: «Ainda hoje / cada som desse tempo ressoa / no longo corredor da tua infância / como a voz de ninguém     E no entanto / ouves agora as mesmas badaladas / ecoando de meia em meia hora» («Insónia», p. 11). Na cultura chinesa, não é o passado que está atrás das costas, mas sim o futuro, porque entre os dois é o passado o único que se pode ver. O passado é visível, perceptível, por estar acabado, por ser, enquanto o presente é puro devir, que nos desloca já para o que ainda não somos. Ou seja, o passado pode oferecer o conforto tranquilo de uma essência, corresponda ela ou não a uma idealização. A questão, nesta poesia, é que o devir do presente é influenciado pelo passado: as coisas por fazer são influenciadas pelas coisas já feitas (e o acabamento destas revela-se ilusória, é disso que o fantasma é sintoma). Somos seres feitos de tempo, como o disse Proust. O que vivemos repousa em nós, solidificando-se como placa tectónica. Esta parte do livro é uma demanda arqueológica que vem interrogar o presente, interpelando-o, moldando-lhe o devir: «Regressa neste inverno o tempo exausto / de outros invernos    Rostos submersos / sorriem e emergem devagar / do frio rio dos versos» («Elegia», p. 10). Deve destacar-se que a pausa prosódica assinalada pela pontuação é substituída por um espaçamento maior, processo que se repete mais frequentemente em poemas da primeira parte, menos na segunda e nunca na terceira. O tempo exausto de outros invernos, corporizado pelos rostos submersos, emerge dos versos do poema (de salientar a assonância e rima em eco de «frio rio»). Não é algo que houvesse precedido a escrita do poema, é antes deflagrado pelo próprio poema (entendido como experiência). E no poema, também: um exercício de distanciamento que permita pensar este «líquido» teatro privado, composto por diversos rostos, diversas imagens, de proveniência vária (as pessoas que se cruzaram com o autor, a Dália do poema de Camilo Pessanha, etc.). Talvez esta criação de melancolia e assombramento nos permita entender um pouco melhor o que é a elegia (todos os títulos são catafóricos). Diz-nos ainda o poema que, tal como para Enzensberger, a poesia é mausoléu da história: as imagens engendradas pelas leituras de outrora comparecem agora no poema. A palavra evoca fantasmas. Um pouco como no primeiro Manuel António Pina, a poesia de Amaral situa-se depois da literatura. Ocorre também ser o próprio autor a imaginar-se evocado quando outros dizem o seu nome, lá em cima no avesso da terra. O sujeito poético está morto, a vida é vã, de nós sobrará um resto, em pouco nem isso evocável, como em «Se te queres matar, porque não te queres matar?» de Álvaro de Campos, em que nos é mostrado como a lei da vida nos reduzirá a um nome lembrado em duas datas, na melhor das hipóteses, primeiro, até o manto do oblívio se estender derradeiramente. Cito o que Américo Lindeza Diogo (1997: 42) escreveu sobre «Ambiente» de Álvaro de Campos, que se me afigura aplicável também neste contexto: «Identificação mimética com o morto que implica fazer(-se) de morto – é isto a literatura. Com palavras de Pessoa, a infância desolada de um deus futuro.» Livros não são mais do que nomes convocados, sendo o nome o que resta do que fomos. Eis os versos de Amaral:
Continuas sozinho e todavia
milhares de vozes mudas te segredam
os nomes do passado
quando abres esses livros e descobres
que também tu serás unicamente
um nome soletrado por alguém
no avesso da terra («Livros», p.14)
«Outrora agora» abre com «Voz», durante o qual o sujeito poético procura a verdade do seu desejo. Como me fez notar a amiga Francisca Monteiro, citando eu palavras dela, em quase todos os poemas desta parte (há uma excepção) figura um «tu» que o sujeito poético interpela, mesmo que se possa interpretar como sendo uma projecção de si mesmo, à semelhança da imagem do «espelho», a qual aparece em diferentes poemas. Ou seja, há um distanciamento, uma dobra do sujeito sobre si. Uma excepção: o poema «Cais da Pedra a Santa Apolónia», onde figura o «nós», curiosamente o poema mais narrativo da secção. Antevê-se, nos primeiros versos de «Voz», um mais amplo desconhecimento futuro, a que corresponderá maior sabedoria, contudo. É difícil não considerarmos que o poema ilustra aquilo que a voz poética procura no acto da escrita. Como se nem na escrita nem na vida se devesse procurar alguma coisa («ainda» sublinha a persistência do desejo, se não a inconsequência dele). (A mesma ideia comparece por exemplo em «Espectro» (p. 25), poema onde a vanitas lança uma sombra sobre o sol e nos define como mortos transcendidos por uma vida irrazoável: «Sempre soubeste / que nada vale nada / mas queres continuar».) Não se procura um corpo, uma alma, uma luz, nem uma voz; apenas palavras, o mínimo suficiente que assegure que outra voz seja engendrada por elas. Portanto, as palavras que a escrita procura criarão uma voz que poderá ser, se o acaso o quiser, a do poeta. Se ao poeta é dado definir o que procura, isto é, escolher o material de que é feito o poema, não possui ele a priori garantias de que esse material coincida com uma voz que seja sua. As palavras que compõem o poema não coincidem com a voz que as enunciou, voz essa que parece nem preceder o acto de escrita, isto é, ou o poema nasce ex-nihilo ou então nasce de uma voz que não é a do poeta, pois apenas o poema lhe devolverá de novo a sua.
Voz
Não sabes    Saberás cada vez menos
o que ainda procuras
outro corpo    uma alma
suspensa no abismo ou nada disso
apenas uma luz
apenas uma voz ou simplesmente
palavras
à espera de outra voz que por acaso
seja de novo a tua (p. 9)
Mais do que para defender uma voz, uma identidade, o poema serve para a procurar, embora não haja garantias de que o poeta a encontre – «procura-se o lugar onde se pode procurar melhor», Luís Quintais dixit (2003: 134-135). A poesia é assim uma demanda sem objecto – nem objectivo, pura demanda. Não só porque o poeta se encontra limitado por nada saber e cada vez menos saber, posto sujeito à errância do desejo, mas também porque qualquer voz difere e se distancia dos signos, por definição iteráveis, que enuncia. Creio que o acaso mencionado no poema diz respeito à impossibilidade de controlar e de determinar o sentido do texto. Comunicação de um sentido, como enunciava eu no início; mas assumpção, logo no poema inaugural, da dificuldade da tarefa.
Retomam-se alguns destes tópicos noutros poemas, nomeadamente em «Aranhas» (p. 23):
Retomam nesta casa o solitário
trabalho de mil séculos
Ei-las de novo aqui      No seu mistério
cresce o frio silêncio
das vozes de outro tempo      Aprisionam
na surdina da noite essa memória
de outros aniversários
em corpos como o teu      Se reparares
serás apenas isso
insecto tão incerto como um espectro
um dia vivo mas outrora agora
envolto num sudário
perdido no seu canto      Desde sempre
as aranhas
tecem o seu império
esquecido labirinto onde procuram
o centro do universo
Um «insecto incerto» perdido no seu canto, imagem recorrente do labor do escritor, tecendo o seu texto, o seu canto no seu canto, como a homonímia autoriza. Repete o poema um processo frequente neste livro (sobretudo em «Epicentros») de desdobramento do «eu» num «tu». Escrever é lei inscrita nas aranhas, seres definidos pela espectralidade, encerrados num labirinto onde porventura nem matarão Minotauro (o sentido) nem usarão o fio de uma Ariadne para do poema saírem. Da lei supõe-se a ausência de liberdade, uma condenação solitária à escrita, como as aranhas estão condenadas a tecer teias. O sudário, para além da evidente referência à nossa mortalidade, é também o texto donde não pode sair este «eu» mascarado de «tu». No fundo, a observação do quotidiano como educação sentimental que depende de uma vontade («se reparares», se te deres ao trabalho, se parares e olhares). Um dia terás sido vivo, agora apenas «insecto tão incerto como um espectro» (aliterações, assonâncias, paronomásia). Sublinho ainda este «outrora» que, sobretudo porque perto do outro deíctico «agora», se reporta a um tempo indefinido, de que não temos memória precisa. «Outrora agora» acentua mais neste poema a evanescência da vida, como um sopro, em que outrora parece agora. Aquele outrora talvez seja o tempo da infância, ainda não maculado pela memória de outros aniversários (pela memória, tout court, nem pela palavra, lembrando Manuel António Pina). Ser aranha é ser introduzido ao tempo, à consciência da passagem, à condição mortal. Acrescentando algo a Proust: não somos seres feitos de tempo, tornamo-nos seres feitos de tempo. Também é dito, aprofundando estes princípios, que a mortalidade é condição do poeta. E, já agora, com a mortalidade estamos igualmente condenados à imperfeição, à limitação, que não consentem tardes perfeitas, nem origem, nem escatologia:
Não havia passado nem futuro
e agosto era um mês sem princípio nem fim
uma tarde perfeita onde cabia
a música do sol («Atlântico», p. 15)
Talvez consinta sentidos, embora sem sol.

II – autobiografia, requiem, fantasma, ferida, sentido, ser, relâmpago, inferno
Este andamento é o mais intimista do livro, tendo por base algo circunstancial, explicado pelo in memoriam a Maria Isabel Trovão de Almeida Santos. É expressa amargura pela perda e pelo tempo que este amor não conheceu. Assumimos os factos narrados como biografemas: o encontro na biblioteca, a partilha de leituras, o receio ponderado de se dizer mais do que se deve, o que poderia levar ambos a perder o pé (facto que acabou por acontecer), o reencontro doze anos passados, a derradeira visita ao hospital. Esta parte do livro, despojada de artifícios, com enjambement quase nulo, respeitando a cesura a prosódia da oração, é uma narrativa autobiográfica em que se grafa também o que não se viveu. Afinal, uma parte da nossa vida é feita daquilo que não vivemos, mas que se mantém tão vivo como o (pouco) que vivemos. Porém, centremo-nos no vivido, na homenagem póstuma que o requiem elabora.
O que uniu ambos foi a melancolia, «essa herança do céu que há no inferno» (p. 31), o que faz do prazer e do sofrimento o mesmo. Em «Biblioteca» tal fica claro, até pelas referências que ambos partilhavam: «Aristóteles, Freud [e] Robert Burton» (idem). Antes de prosseguir, uma palavra sobre melancolia (através de Freud mediado por Agamben). A melancolia deriva de uma perda imaginária, inscrita no inconsciente, não é tanto efeito de uma perda efectiva no real. Contrariamente ao luto, caso em que realmente houve uma perda. Isto é, o melancólico engendra um fantasma que continuamente buscará. Por outras palavras ainda, a melancolia é uma forma de possuir o impossível (sendo que a primeira e a última secções do livro são atravessadas por um gosto neo-romântico ligeiramente necrófilo). Este livro de Fernando Pinto do Amaral é um confronto com o fantasma, cuja incarnação serão as vozes de outros autores (como acima procurei dizer), a própria voz – duplo – que o texto engendra, ou uma dor que não conhece fim (embora não se reportando à realidade portuguesa, que fique claro, na perseguição de um «rastro ensanguentado e vacilante» (p. 32) parecem ecoar versos de «Um adeus português» de O’Neill, não olvidando igualmente o tropeçar de ternura):
[...] porém com a perversa consciência
de que, fosse qual fosse a nossa sorte,
nunca conseguiríamos trocar
uma só dessas dores
por qualquer felicidade. (p. 32)
De resto, o mundo não nos é mais do que fantasmas (significantes, destituídos de substância, puras formas), sendo a linguagem evocação de fantasmas, como o explica Fernando Guerreiro (2011: 9):
Se, através do processo de representação (simbolização), o estatuto do objecto na linguagem é o do «morto» (o de um significante disponível), não é de estranhar que do «real» (do «mundo»), a linguagem não produza (evoque) mais do que fantasmas (Poe). Morre-se na e pela linguagem para dela se desprender (sempre imaginariamente) como fantasma: corpo glorioso ainda que críptico e sepulto.
Na biblioteca começou algo sem nome. Ou melhor, desconhecendo o que separa «a paixão do amor, o amor da amizade», o poeta saturniano (relembrem-se as traduções dos Poemas Saturnianos de Verlaine e de As flores do mal de Baudelaire) socorre-se de outros nomes para descrever o que sentia: «relâmpago», «fogo», «incêndio». (p. 33). Não havendo salvação no mundo, nada sendo remível, pelo que a falha dele constitutiva é insuprível; nem tão-pouco provável, como se infere, uma auto-cognoscibilidade cabal, sobra um «relâmpago», instante fugaz e retumbante, que assusta no mesmo passo que ilumina. Isto é, que nos proporciona uma experiência do terror, introduzindo-nos ao outro e ao perfume de uma flor «rara ou desconhecida» (do mal?) que
rompendo sobre as cinzas ainda mornas
destes dois corações já transformados
num mesmo coração clandestino
a pulsar toda a noite sem ninguém ouvir. (p. 33)
Seguir-se-á a separação e sobrarão desassossego e enigmas (o que teria sido, o que somos, o que éramos, o que falhou). Aquele fogo prolonga-se no «álcool» que «arde tão devagar / até cauterizar o coração» (p. 34). A ferida vai sendo fechada paulatinamente, mais devagar do que desejado. Depois de cauterizado o coração e concebido o romance como um sonho entretanto colocado entre parênteses, uma sabedoria sobrevém, um pouco a contragosto e de forma «instintiva». Porém, é essa sabedoria imprescindível se se pretende uma gestão de danos doravante mais eficiente; é ela a educação sentimental que, justamente, dirá outrossim do duplo como criatura do medo:
Talvez então venha a ser fácil
falar tranquilamente, decifrar
cada um dos enigmas que nos moldam,
os gestos cada vez mais doseados
pelo travão quase instintivo
de uma sabedoria necessária
para sobrevivermos a nós próprios
com leves queimaduras que haveremos
de saber disfarçar, como se nada fosse. (p. 35)
No fim de tudo, depois de se brincar com fogo, sendo ingénuo «[...] fingir que a paixão é coisa simples, / que pode regular-se como o termostato» (idem), restam as palavras, o que implica também que sejam elas restos. Não havendo ser, sendo irreparável a nossa finitude, e a consciência dela (a infância é o ser, não maculado pelo tempo, inconsciente da nossa finitude), há o sentido, as palavras – paliativos. Sobre a estância que abaixo transcrevo, destaco ainda que o rosto da amada, também o rosto do amante, por isso ela o suicida (enunciação paradoxal de um outro-mesmo), apenas oferece uma certeza: um sentido. Aproximamo-nos do outro e não obtemos acesso à casa do ser, nem nenhum aleluia, nem o gozo da Coisa; apenas a certeza de um sentido, estando pressuposta a nossa imersão num universo semiótico sujeito à nossa voraz hermenêutica:
O que é ser inocente? O que é ser sábio
quando a morte e a vida são iguais
e o tempo é sempre pouco, já tão pouco
na lenta madrugada que desfaz
as melhores intenções, e fica apenas
a certeza iminente de um sentido
nesse teu rosto que me suicida? (p. 36)
Este «Requiem» ainda conhecerá um «Reencontro», após separação (marcada e acentuada prosodicamente pelo espaçamento mais amplo, conferindo-lhe algum dramatismo): quatro quintilhas, redondilha-maior, rima cruzada e interpolada. Destaco que o desassossego das ilhas é subsumido pelos «oceanos», até então latentes, que as unem finalmente, tendo sido desbaratada toda a submissão ao tempo, esse «algoz» (p. 37):
Doze anos     Doze anos
nunca passaram por nós
Doze anos     Oceanos
que de súbito encontramos
quando já não estamos sós (idem)
Outro reencontro se dará no «Quarto 21», «serviço Medicina 1-B» (p. 38). Os animais não experienciam a morte – nem o tempo, et pour cause. Assume este poema um distanciamento, uma salvaguarda psicológica: ao invés de um nós, é um «tu» e um «vós» que são interpelados por uma instância-suposta-saber que os observa e aconselha. A experiência da morte, a do despojamento, está longe de ser o inferno. A haver algum céu dependerá ele da capacidade de se alijar carga (Kavafis):
Estás aqui
com ela desde sempre
entre sondas e tubos e gemidos
que alastram abafados de outros quartos,
mas pressentes agora sem receio
uma trégua qualquer, isso a que chamas
alma
verificando, afinal, que o inferno
nunca morou aqui e, ao contrário,
continuará lá fora, nesse mundo
pra onde voltarás quando saíres. (p. 39)
Há um inferno lá fora revulsivo. O interior abafado do hospital não aprisiona tanto como o de lá fora que, aparentemente, prometeria alguma libertação. Num finale com o seu quê de tropeço de ternura, dirá o poeta da indizibilidade do real, sobretudo quando irrompe ele traumaticamente, num tempo de confinamento da literatura em si, condenada à comunicação mínima de sentido, e de erosão da crença não só na capacidade de a poesia mudar alguma coisa, mas também na de ser-se possível mudar o que for. Tragédia esta a do encerramento num mundo irremediavelmente maculado pelo desconcerto maneirista. Isto é, do encerramento num inferno baudelairiano (apenas percorrível, como Cesário ensinou e Caeiro explicou). Somente os elementos naturais, guardando a memória humana numa hipótese de reencarnação, poderão restaurar a harmonia de que o mundo humano carece:
Como vês
o nosso encontro há-de ficar
para a próxima vida
quando tivermos ambos renascido
sob a forma de nuvens, pouco a pouco
unidas uma à outra e ocupando
todo o espaço do céu
até se desfazerem para sempre
numa chuva de lágrimas que lave
toda a tristeza humana, o desconcerto
do mundo e sobretudo
poemas tão inúteis como este (p. 40)

III – epicentros, metamorfose, cadáver, aurora
Eis-nos chegados à terceira parte do livro, «Epicentros», onde o decassílabo é experimentado, assim como o soneto. Isto é, trata-se da parte onde a destreza técnica do autor mais fica evidente. As composições não são intituladas, apenas numeradas. O ritmo dos poemas desta parte, com excepção do oitavo, é pautado pela anáfora. Os primeiros poemas comportam o modo imperativo reiteradamente através da repetição anafórica, expondo uma arte de vida até aí ausente da vida do alocutário. Falta-lhe (leitor ou próprio poeta, referidos pelo «tu») um suplemento vital, por incúria aparentemente, isto porque se exclui de um destino que lhe teria sido traçado. Abriria o poema assim o caminho a uma «metamorfose» (p. 48), que dependesse da incandescência do desejo: «Acende a nova estrela do teu corpo» (p. 47). Deflagraria em cada um poema uma bomba dionisíaca que conduzisse à alteridade, esteja ela dentro ou fora do sujeito. O alocutário desconhece a verdade do seu desejo e compete ao sujeito-poético-suposto-saber enunciá-la, através de ordens (ainda que sob a forma de futuro): «irás sozinho / até ao fim feliz do firmamento» (idem). Torna-se o poema verdadeiramente lei, para combater a inautenticidade do viver – exercício de ponderação, uma ars vivendi, como referido.
Mas não apenas isso. Aos poucos torna-se claro que a inautenticidade da existência deste «tu» também deflui da profunda anomalia do quotidiano. O «tu» está encerrado na tragédia do quotidiano – como uma geração de poetas, poder-se-ia dizer – e recebe notícias da morte da literatura. Tragédia do quotidiano que também é a da servidão às suas solicitações e a da gestão do tempo, algo que define a poesia de um certo Ruy Belo. É expressa essa tragédia através de um discursivismo que se pretende sentimental. Apesar desse discursivismo, o segredo de cada poema permanece por revelar; o autor espera, aguardando um milagre impossível. Sem «palavras vorazes», sem vitalismo. Isto é, o segredo do poema depende da voracidade de «velhas sílabas», que serão porventura as de uma vanguarda ou de um modernismo que se perderam. Este é o paradoxo: a literatura observa-se morta, depois de um tempo, incapaz de produzir o novo, «à espera de um clarão». Do morto só se pode esperar que espere. O clarão, a ruptura, há-de ser induzido por algum deus ex machina, posto a poesia já não fuja ao «cadafalso / do telefone», isto é, à servidão ao quotidiano. O poeta é incapaz de reavivar «palavras vorazes», apenas trabalha palavras brandas, presume-se, adequadas a um cadáver preso ao quotidiano, condenado à heteronomia da «cidade infiel», já nem uma «alma» que fosse capaz de sentir autenticamente. Se no actual contexto as «palavras vorazes» são irrecuperáveis, não menos o é a pré-modernista autenticidade e ingénua transparência linguística. A poesia é um corpo fragmentado vertido na vida, incapaz do novo, da autenticidade e da transparência (o «coração» é impossível, estamos condenados a distanciarmo-nos do outro para preservação narcísica – um tempo sem paixão – e ao uso da ironia).
De novo aqui, sem sombra de milagre
que desate o segredo de um poema
com palavras vorazes, velhas sílabas
abertas na cratera de uma boca
à espera de um clarão que te devolva
a memória de um mundo de além-túmulo
no distraído rosto dos planetas.
De novo aqui, sem nada que te diga
para onde fugir a esta hora,
sem ninguém que te poupe ao cadafalso
do telefone já mudo no teu bolso,
tão morto como tu, que já não tens
sequer esse refúgio confortável
a que por vício ainda chamas alma.
De novo aqui, sem espírito que valha
ao incerto sarcófago do corpo
disperso uma vez mais no descompasso
da cidade infiel que ainda te dói
quando tudo se cala, quando o frio
se infiltra já na areia dos teus ossos,
na pedra a que chamavas coração. (p. 50)
As imagens de decomposição e degradação estão presentes desde logo na capa do livro. As palavras são paliativos para o ser-para-a-morte, mas a própria literatura vai vivendo dos paliativos que as palavras são. Isto é, poesia e literatura partilham a mesma condição: «transforma-se de novo o amador / na coisa amada» (p. 56). Num tempo de erosão de crenças, não só religiosas, o outro é-nos ofertado como «armadilha». A paixão é pós-modernamente entendida como um mal que urge erradicar, ou quando menos moderar; tal como a crença, que Žižek entende «descafeinada» (2006: 127 e seguintes). Quando acredita, o homem pós-moderno ocidental evita todo o pathos; envolve-se com as suas convicções à distância.
Beija-me outra vez
enquanto fico para sempre imune
ao bem, ao mal, ao céu e ao inferno
e sou apenas letra morta, apenas
sombra da tua sombra, agora presa
na armadilha feroz do coração. (p. 55)
«Letra morta» é o lugar do poeta. Qualquer poema nos fala a partir desse lugar morto do «eu» poético, preso ilusoriamente no coração.
O crepúsculo será este tempo que «cache son fou» (Henri Michaux, mencionado em epígrafe, p. 45). Agora que o digo, é uma pancada na cabeça a concatenação de epígrafes escolhida para esta secção: Henri Michaux e João José Cochofel, um surrealista e um neo-realista. Um esquivando-se à consciência e supondo um conhecimento informulado e um outro crente na coincidência da voz com a palavra e desta com o mundo.
Dizer o incompreensível será a aurora da poesia. O problema consiste na descrença nos amanhãs que possibilitariam aquela aurora (crise das grandes narrativas). Ou seja, o modernismo, a vanguarda, as «palavras vorazes», vêm amanhã, se acreditarmos. Para que isso aconteça, é pressuposta uma dose de ascetismo, de rompimento dos nós do coração, de cessação da busca de outro (mar). A partir daí, desvanece-se a ilusão, o corpo funcionará normalmente, não mais os passos serão desastrados. E será então, esvaziado o desejo, que se falará sem dizer nada que o mundo compreenda.
Um dia hás-de nascer fora de ti
num relâmpago novo deste céu
onde se afoga a luz da madrugada
já sem nenhuma estrela que te aceite
a translúcida febre das palavras.
Um dia hás-de romper os cegos nós
do monstro a que chamavas coração,
o antigo labirinto que te ilude
a inocente máquina do corpo
na escuridão dos passos desastrados
em busca de outro mar que não conheças.
Um dia hás-de falar sem dizer nada
que o mundo compreenda e será teu
esse primeiro azul da madrugada. (p. 60)



Bibliografia
Agamben, Giorgio, Estâncias. A palavra e o fantasma na cultura ocidental, trad. Selvino José Assmann, Belo Horizonte, Editora UFMG, 2007
Amaral, Fernando Pinto do, Paliativos, Lisboa, Língua Morta, 2012
Diogo, Américo António Lindeza, Modernismo, readymade. Notícias das trincheiras, S/L, Cadernos do Povo-Ensaio, 1997
Enzensberger, Hans Magnus, Mausoléu, Lisboa, Cotovia, 2004
Guerreiro, Fernando, Teoria do Fantasma, Lisboa, Mariposa Azual, 2011
Quintais, Luís, «Procura-se o lugar onde se pode procurar melhor», in Relâmpago, n.º 12, sobre a Nova Poesia Portuguesa, Lisboa, S/E, 2003, pp. 134-135
Žižek, Slavoj, A subjectividade por vir. Ensaios críticos sobre a voz obscena, trad. Carlos Correia Monteiro de Oliveira, Lisboa, Relógio d’Água, 2006

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