quinta-feira, setembro 26, 2013


Imaginei-a novamente perdida na torrente de carros e autómatos de Oxford Street, fragmentando-se a sua personalidade com o presente continuamente fragmentado. Só se vive no presente? Existe realmente o passado?
Ela podia dizer, com legitimidade, que tinha um passado, e tão longo que talvez ainda não tivesse tido tempo de chegar ao presente. Ou cada momento do presente, por um mesquinho acaso, o voo de uma mosca azul contra o artesoado ou o fulgor de uma vela ou o suave contacto da pega de uma velha maleta, arrastava-a para longe, passado dentro. Ou talvez nela pulsassem simultaneamente os múltiplos tempos e eus que tinha dentro dela.
As recordações corriam mais depressa que o automóvel que conduzia por Regent Street, imagino que terá sorrido ao passar diante da estátua alada de Eros, em Picadilly, seguiu à direita por Pall Mall East, bordejou Trafalgar Square para descer por Northumberland Avenue, seguiu à direita por Victoria Embankment até à ponte de Westminster...
Gostaria de ter ido com ela à sua histórica casa no campo, já semimuseu que, a determinadas horas, estava aberto aos visitantes.
Saborearíamos os dois um bom copo de vinho de Espanha, e talvez rebolássemos na cama onde dormiram a rainha Isabel e o rei Jaime, retirando primeiro, como precaução, o cartãozito com o inevitável «É favor não mexer...»
Na melhor das hipótese, levar-me-ia pelo caminho de fetos até ao carvalho centenário e estendíamo-nos na relva como se ainda estivéssemos em Hyde Park e ela estivesse quase a exclamar, Êxtase!, contemplando o lago já escuro ao cair da tarde.
À luz de uma lua invisível, sentado em Berkeley Square, diante dos malcheirosos sacos de plástico cinzentos contra a grade, fiquei quase tragicósmico e pensei se estão realmente mortas as estrelas mortas cuja luz ainda vemos.

- Julián Ríos
(tradução de Jorge Fallorca)
in Amores que atam, Teorema

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