quinta-feira, agosto 22, 2013

Erin Lierl



Uma poeta de rua norte-americana em Lisboa

Levar a vida de improviso e bater a sua flor numa máquina de escrever

Erin Lierl, poeta de rua norte-americana de passagem por Lisboa, acaricia as memórias de um país que já não está para poetas

Ao colo do poeta Chiado, muito longe de casa, Erin Lierl tem sobre os joelhos uma pequena máquina de escrever onde bate de improviso uns versos, partindo de um tema que lhe é sugerido por quem cruza o seu caminho e repara no sinal afixado - "Poet by topic". Sem adivinhar que a figura recitativa que sobre ela se arqueia - entre um Pessoa bem sentado na Brasileira a posar aborrecido para as fotos dos turistas e um Camões hirto e finalmente honrado na praça mais acima -, foi António Ribeiro, bardo que, envergando um hábito clerical, no século xvi satirizava o mundo que via desfilar no Chiado, caçando em tom jocoso gestos e vozes dos grandões de então. Famoso pelos dotes de exímio improvisador, atingiu na altura uma popularidade com que o seu épico contemporâneo nunca sonhou e ali ficou, estátua, a servir de encosto aos vindouros.
Em Lisboa, há apenas duas noites, a jovem poeta norte-americana chegou como a pressão de um dedo no gatilho da velha pistola lírica, acertando na curiosidade de um bom número de alvos, mas, como nos explicaria depois, estava longe de saber que tinha fundeado num triângulo das Bermudas das águas lusas. Calhou ali porque lhe pareceu bem, e talvez seja a sua discrição entre o espalhafato dos restantes números para emboscar turistas o que mais nos convida. "How much for a poem?", interrompiam duas miúdas enquanto aguardávamos que o poema encomendado pouco antes de chegarmos fosse concluído. O donativo fica ao critério de quem escolhe um tema, diz-lhes.
Quando nos chegámos à frente tínhamos já conferenciado e escolhido para tema a sedução. É assunto que tanto podia cair ali como um vulgar anzol ou, em águas mais profundas, como uma âncora. Erin quis saber a razão da escolha. Éramos em número suficiente para que o rubor se espalhasse sem ninguém corar, e a resposta que demos não aliviou as coisas: "Dá para tudo, a sedução./ Let"s start there and see where it goes."
Tínhamos um tempo para matar, como antigamente, quando deixávamos os negativos à espera que os revelassem nalguma loja da Kodak. Quase meia-noite e, enquanto à volta levantavam as esplanadas, era o Camões que tinha a plateia lotada, enquanto se iam formando as pequenas matilhas antes de encurralarem a alegria possível nas vielas do Bairro.
Na volta, numa pequena mala de viagem, entre a "Ópera do Malandro" e uma antologia do Pessoa (em português ambas as edições), lá estava o poema que nos ficara prometido.
Dizem alguns poetas que o primeiro verso é oferecido, são os deuses que fazem esse primeiro lance de dados, inspirado. Depois o poeta que se mostre à altura e prove que é digno dele. Mas quando se trata de alguém que se dispõe a escrever dezenas de poemas numa só noite e com o tempo contado, ou se tem ligação para um casino no Olimpo ou o melhor é espantar os versos da toca, seja com cão seja com gato, ou mesmo arrebanhá--los à mão. E, de facto, os primeiros versos do nosso poema soavam como um eco mecânico que depunham uma flor no vaso do costume. Mas, sem aviso, já a meio do poema de 16 versos, o mecanismo desconcertava-se e de um embalo genérico surgia a imagem de "um vestido negro" com "as bainhas reforçadas por cacos de vidro", como muros que travam "os dedos que namoram essa fronteira".
Um poema que abria com as previsíveis notas das chochas serenatas, admitia de súbito que, na sua sedução, apenas cabia um espaço para anúncios que mais não fazem que "publicitar o vazio", mas que desse modo também permitem ao outro vir fixar a sua existência naquela página de classificados. A coisa não ficava apenas séria, no fim deixava um recado difícil de engolir. Colando um disclaimer ao passe de engate, explicando que se nos envolvêssemos não haveria depois espaço para culpá-la quando nos víssemos a sós. Porque afinal a sedução não é mais que "o teatro sem público" onde "tu recitas, mas ninguém te ouve".
Tom Waits diz que os estranhos só falam do tempo, mas enquanto apostam se vem chuva ou sol não deixam de passar guardanapos como os putos nas carteiras da escola. Duas caixas para uma cruz: sim ou não? Com sorte, não. As melhores conversas fazem questão de desiludir as expectativas mais arbitrárias e construir novas, à medida.
Daí a pergunta: e uma entrevista? Primeiro hesita, finalmente larga o dado e (maravilha!) estamos de volta à casa de partida. Então, idade? 27 anos. Vinda de Nova Orleães, assistiu à reconstrução da cidade depois da passagem do furacão Katrina, em 2005, e à boleia do entusiasmo de tudo o que renasce testemunhou um fenómeno curioso que surgiu naquelas ruas famosas pelos lendários clubes de jazz: um poeta desceu do quarto e como um engraxador metafísico ofereceu-se para puxar o lustro às almas que lhe passavam à frente. Por uns tempos foi só ele. Depois a coisa pegou. Uns amigos juntaram-se-lhe, e aos poucos formava-se uma pequena comunidade de "poetas de esquina".
Erin cruzava-se com eles frequentemente, a carreira de tiro lírico ficava bem perto da sua casa. Um dia um amigo introduziu-a no círculo e, a partir de 2010, os textos mais pessoais que então jorravam em prosa mendigando aventuras num ricochete entre quatro paredes, desabrigaram-se, puseram-se à vista. Erin, que diz ter sido sempre bastante introvertida, expôs-se e assim era só o mundo querer.
Em Abril deste ano deixou a cidade e rumou a Key West (no estreito da Florida), onde todos os dias passava pela marina para perguntar aos marinheiros que ali paravam se podiam levá-la... para onde quer que fosse, desde que outro país: Baamas, Jamaica... Acabou em Porto Rico, e sem encontrar quem a levasse mais longe desviou-se da sua flexível rota ao apaixonar-se por um rapaz, natural da Guiana, lugar para onde o seguiu. Umas semanas mais tarde o caminho dos dois bifurcou-se. O Velho Mundo ficava a seguir.
Chegou à capital portuguesa depois de três semanas em Amesterdão. Entrou na Europa por Londres e o frio pregou--lhe um susto que a fez fugir para Paris nem uma semana depois. Apesar do charme, a capital francesa não convence quem busca calor e então rumou à Grécia, onde acabaria por permanecer um mês na ilha de Corfu.
Explica que viajar assaltando as esquinas com a máquina de escrever é uma forma de tomar dos lugares por onde passa um gosto que escapa às colecções de postais. Conhece pessoas, ouve-lhes as histórias, aprende um pouco da língua e caça algumas cabeças. Porque sempre foi mais metida consigo, sem este esquema poético acabava por não se afastar muito do corredor que leva os turistas. Movimento que não lhe diz muito. Assim, vai à boleia, muitas vezes da solidão dos camionistas, e passa boa parte das noites na casa de estranhos que além de guarida lhe oferecem comida. Os poemas cobrem o resto das despesas e ainda dão para amealhar algum. Esclarece, no entanto, que a ideia de os donativos ficarem ao critério de quem pede o poema serve para que a falta de dinheiro não se interponha como barreira, sobretudo para as pessoas mais jovens e mais tesas. Nas duas noites lisboetas deram-lhe menos de um euro por alguns poemas, por outros recebeu vinte. À maioria dos clientes cinco euros terão parecido o preço justo.
Quanto à pergunta de se nos dias que correm as coisas não estão mais complicadas para os netos de Kerouac, ansiosos por se meterem estrada fora, a resposta quase parece simples: sou uma miúda na casa dos vinte, branca, a viajar sozinha, por isso não é difícil conseguir boleia. É intimidante não é? Na América, diz, habituou-se a que o sorriso bondoso dos estranhos se retorça, salivando perante a ideia de dormirem com ela. Também não acontece pouco cruzar-se com pessoas agressivas ou mesmo levadas da breca. Já na Europa o ambiente é um pouco mais tranquilo. Mas lembra que há ciência no modo de nos comportarmos para evitar alhadas. A regra de ouro é recolher a partir do momento em que o Sol deixa de olhar por nós. E quando se atravessam distâncias que levam dias, é preciso estudar a pessoa que faz a simpatia de nos levar.
Para acabar, pergunto-lhe se o balanço que tomou antes de partir foi a ânsia de fugir a alguma coisa ou se foi antes o ânimo à procura de bater algo mais que o tempo perdido. Diz que quando saiu de casa tinha um sonho bastante claro: fazer vida no mar, meter-se nalgum barco ébrio. Tinha até já idealizado uma tripulação de companheiros místicos, a cortar oceanos, debaixo de estrelas e de volta de um astrolábio deslumbrado. Aventura, liberdade... As blasfémias com que a juventude, quando se levava a sério, causava choque nas cadeirinhas de balanço e secretárias de pés bem assentes na terra lendo jornais a sangrar estatísticas ameaçadoras, evidencia como a vida está a ficar impossível fora do círculo até onde reina o ar condicionado. Sair de casa com um sonho, outro que não passe por uma mala da Chanel ou um lugar num concurso de ídolos, está hoje francamente demodé. Quem sabe se quando nos cruzámos com ela o que mais nos inquietou não foi precisamente esta ingenuidade tão mais lúcida que os nossos seguros fidelidade e confiança para essa história vadia e desavergonhada, que espera só o dia de se poder tornar a nossa verdadeira vida.
 

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