sábado, agosto 24, 2013

A LEGALIDADE E A LEGITIMIDADE


Há uma parábola de Kafka, incluída em O Processo, onde se conta a história de um camponês tímido e obstinado que fica a vida inteira diante da porta da Lei, junto à qual está um guardião, à espera de um sinal para entrar, até que, no extremo da sua espera, fica a saber que a porta estava aberta e destinava-se exclusivamente a ele. Esta parábola tem sido objecto de muitas interpretações. Uma das mais interessantes é a de Derrida, para o qual a Lei “é guardada por um guardião que não guarda nada, ficando a porta aberta e aberta para nada”. Houve, porém, quem apreendesse na situação descrita nesta parábola uma analogia com a lei que se mantém em vigor mas é destituída de significação, isto é, em que ela já não prescreve nada e se tornou impossível de executar. Deve-se ao maior teólogo - do século XX - do judaísmo e da mística judaica, Gershom Scholem, esta ideia de uma lei que permanece em vigor, mas não tem significação. Na sua interpretação, é essa a condição da lei no romance de Kafka, em que ela, por meio de uma redução extrema, se mantém “no grau zero do seu conteúdo”. Uma lei reduzida a nada, ao “grau zero do seu conteúdo”, uma lei que vigora mas não significa, é o paradoxo não só do estado de excepção mas também do estado das democracias actuais, onde, com frequência, se perde a consciência da distinção entre dois princípios essenciais da tradição ético-política: o princípio da legitimidade e o princípio da legalidade (o filósofo italiano Giorgio Agamben chama a atenção para estes dois princípios num texto – Il Mistero del male – sobre a resignação do Papa Bento XVI). Olhemos para alguns exemplos recentes da vida política em Portugal, em que vários políticos tiveram que vir dizer publicamente que agiram dentro da legalidade. Sempre que um político evoca a seu favor a estrita legalidade, quase sempre se colocou fora da legitimidade, isto é, à margem do próprio princípio que funda e legitima o exercício do poder político, as suas regras e as suas modalidades. A razão pela qual as instituições e os poderes democráticos se encontram hoje deslegitimados não é por terem caído na ilegalidade; pelo contrário, afirma Agamben, é porque os poderes e os seus representantes perderam a consciência da sua legitimidade que a ilegalidade se tornou tão generalizada. Nestas circunstâncias, a ideia de corrupção tornou-se difícil de apreender, passou a ser um expediente legal a partir do momento em que o que se corrompeu foi a própria distinção entre o princípio da legalidade e o princípio da legitimidade. Por isso, querer resolver certas questões (como a da possibilidade de os presidentes de câmara se poderem candidatar a outra câmara quando já cumpriram o número limite de mandatos) através do direito, levando às últimas consequências a interpretação da legalidade formal, é entrar na perda irreparável de toda a legitimidade substancial. É promover a hipertrofia da lei por ausência de princípios que definam a legitimidade. Se é verdade que um poder que se pretende baseado numa legitimidade que despreza a legalidade é de natureza reaccionária e totalitária, também é verdade que se a democracia fica reduzida a regras e procedimentos jurídicos e já não resta nenhum outro princípio de legitimação senão os resultados eleitorais, então a legitimidade foi completamente absorvida pela legalidade (da qual os seus beneficiários dirão que é “incontestável”) e deixa de haver qualquer saída para a imobilidade e o vazio em que caiu a máquina política. Não é, porventura, neste ponto em que nos encontramos?

- António Guerreiro
in Ípsilon (9.08.2013)

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