OS CONFLITOS DA LIBERDADE DE EXPRESSÃO
O mundo em que vivemos entrou num regime de manifestação
hipertélica de onde só sairá por interrupção catastrófica. A hipertelia é uma
lógica coerciva que impele qualquer coisa para além dos seus próprios fins,
anulando os seus objectivos primeiros e instituindo um conflito interno, uma
espécie de silencioso dilema que não pode ser resolvido e só pode prosseguir na
sua via fatal. O sistema financeiro, a economia, a informação, a mercadoria –
tudo isto se tornou, há muito tempo, hipertélico. A doença que lhe corresponde,
por analogia, é o cancro, a multiplicação parasitária das células no organismo.
Exemplo eloquente da vigência da hipertelia são os comentários dos leitores nas
páginas dos jornais online. Aquilo de
que a imprensa padecia e que foi tantas vezes considerado o seu pecado mortal (a
imposição de um sentido único do discurso) encontrava agora uma solução. E a
liberdade de expressão, que desde o Iluminismo se tinha tornado uma reclamação
tão importante quanto a de uma universidade moderna enquanto instância de produção,
legitimação e socialização do saber, ficava agora mais próxima do seu ideal.
Não foi preciso muito tempo para que o ideal soçobrasse e viesse ao de cima a
sua face tenebrosa. As caixas de comentários tornaram-se um vazadouro de
insultos, de difamações, de indignações automáticas, de trocas de palavras
intermináveis e ociosas. Aquilo que era de início visado como objectivo e se
pensava que seria a regra – o diálogo com base no princípio da razão e da
reciprocidade, o acréscimo de saber e de opinião, a ampliação da esfera pública
– tornou-se rapidamente uma excepção: aniquilou-se por hipertelia e foi ultrapassado
por um conflito de objectivos. Os comentários infames proliferam com uma força
colonizadora e de expropriação, impõem a lei, sinalizam o espaço. A ideia
utópica de uma paz eterna - ou, pelo menos, negociável em cada momento - entre
os jornais e os leitores tornou-se uma guerra que procede pela poluição moral e
intelectual (e, para tal, basta uma minoria ruidosa). De tal modo que um jornal
como o PÚBLICO teve de rever os critérios de admissão dos comentários dos
leitores. Esta derrapagem hipertélica tem, porém, o efeito de lançar também a
sua luz sobre uma boa parte dos media,
em si mesmos, naquilo que publicam e no modo como o fazem. E isso é ainda mais
inquietante e coloca-nos perante um dilema que não conseguimos resolver: o
dilema de defendermos a liberdade de expressão, mas termos dificuldade em
tolerar as suas aberrações; por exemplo, o dilema de acharmos que a televisão
raramente está para além de um nível degradante, mas não vislumbrarmos como
útil, legítimo e eficaz reclamar que seja silenciada. Assim, temos de nos
manter ao nível da comédia e dizer dela o que diz uma personagem do dramaturgo
inglês Tom Stoppard: “Naturalmente que sou pela liberdade de imprensa, mas não
posso suportar os jornais”. Há um reverso da liberdade mediática que é monstruoso,
por muito difícil que seja pensá-lo, já que monstruosas são quase sempre também
as soluções para resolvê-lo. Na nossa época, este problema foi acentuado por um
facto: desde há muito tempo que a cultura das elites passou a ser igual à
cultura das massas, aquela que era chamada a “classe dominante” já não cria a
sua própria cultura nem manifesta qualquer necessidade de a produzir. O
analfabetismo funcional, próprio das classes baixas, faz agora parte da
panóplia de atributos das chamadas elites.
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