domingo, agosto 25, 2013

21.


Que alegria, viver
sentindo-se vivido.
Render-se
à imensa certeza, obscuramente,
de que outro ser, fora de mim, bem longe,
me está a viver.
Que quando os espelhos, os espias,
azogues, almas curtas, asseguram
que aqui estou, eu, imóvel,
com os olhos fechados e os lábios,
negando o amor
da luz, da flor e dos nomes,
a verdade transvisível é que caminho
sem meus passos, com outros,
além, longe, e ali
vou beijando flores, luzes, falo.
Que há outro ser pelo qual olho o mundo
porque me deseja com os seus olhos.
Que há outra voz com a qual digo coisas
não suspeitadas pelo meu imenso silêncio;
e acontece que também me quer com a sua voz.
A vida – que avanço este! –, ignorância
do que são os meus actos, que ela faz,
em que ela vive, dupla, sua e minha.
E quando ela me fale
de um céu escuro, de uma paisagem branca,
recordarei
estrelas que não vi, que ela olhava,
e neve que nevava lá no seu céu.
Com o estranho gozo de recordar
ter tocado o que não toquei
senão com essas mãos que não consegui
acolher nas minhas, tão distantes.
E tão alienado poderá o corpo
descansar, quieto, morto já. Morrer
na imensa confiança
de que este viver meu não era só
meu viver: era o nosso. E que me vive
outro ser atrás de uma não morte.


- Pedro Salinas
in La voz a ti debida

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