domingo, junho 23, 2013

Pandémica e celeste


Imagina agora que eu e tu
muito tarde na noite
falamos de homem para homem, finalmente.
Imagina-o,
numa dessas noites memoráveis
de rara comunhão, com a garrafa
meio vazia, os cinzeiros sujos,
e depois de esgotado o tema da vida.
Que te vou mostrar um coração,
um coração infiel,
nu da cintura para baixo,
leitor hipócrita – mon semblable, – mon frère!

Porque não é a impaciência do buscador de orgasmo
quem me atira do corpo para outros corpos
jovens, se possível:
procuro também o doce amor,
o terno amor que adormeça a meu lado
e que alegre a minha cama ao despertar,
próximo como um pássaro.
Se jamais posso despir-me,
se nunca pude penetrar nuns braços
sem sentir – ainda que só por um momento -
igual deslumbramento que aos vinte anos!

Para saber de amor, para aprendê-lo,
ter estado sozinho é necessário.
E é necessário em quatrocentas noites
– com quatrocentos corpos diferentes –
ter feito amor. Que os seus mistérios,
como disse o poeta, são da alma,
Mas um corpo é o livro onde se lêem.

E por isso me alegro de me ter rebolado
sobre a areia espessa, os dois meio vestidos,
enquanto buscava esse tendão do ombro.
Comove-me a lembrança de tantas ocasiões…
Aquela estrada de montanha
e os bem empregados abraços furtivos
e o instante indefeso, de pé, após a travagem,
colados contra o muro, ofuscados pelas luzes.

Ou aquele entardecer perto do rio
nus e a rir-nos, coroados de hera.
Ou aquele portal em Roma – em via del Babuíno.
E lembranças de caras e cidades
quase desconhecidas, de corpos entrevistos,
de escadas sem luz, de camarotes,
de bares, de passagens desertas, de prostíbulos,
e de infinitas barracas de praia,
de fossos de um castelo.
Lembranças vossas, sobretudo,
oh noites de hotéis de uma só noite,
definitivas noites em sórdidas pensões,
em quartos recém-frios,
noites que devolveis aos vossos hóspedes
um esquecido sabor a si próprios!
A história em corpo e alma, como uma imagem destruída,
de la languer goutée à ce mal d’être deux.
Sem desprezar
– alegres como festa a meio da semana –
as experiências de promiscuidade.

Embora saiba que nada me valeriam
trabalhos de amor disperso
se não houvesse o verdadeiro amor.
Meu amor,
íntegra imagem da minha vida,
sol das próprias noites que lhe roubo.

Sua juventude, a minha,
– música de meu fundo –
sorri ainda na imprecisa graça
de cada corpo jovem,
em cada encontro anónimo,
iluminando-o. Dando-lhe uma alma.
E não há coxas formosas
que não me façam pensar em suas formosas coxas
quando nos conhecemos, antes de ir para a cama.

Nem paixão de uma noite de dormida
que possa comparar-se
com a paixão que dá o conhecimento
os anos de experiência
do nosso amor.
                              Porque em amor também
é importante o tempo,
e doce, de algum modo,
verificar com mão melancólica
sua perceptível passagem por um corpo
– enquanto basta uma expressão familiar
nos lábios,
ou a ligeira palpitação de um membro,
para me fazer sentir a maravilha
daquela graça antiga,
fugaz como um reflexo.

Sobre sua pele esvaída,
quando passem mais anos e estejamos no fim,
quero esmagar os lábios invocando
a imagem do seu corpo
e de todos os corpos que uma vez amei
ainda que um só instante, desfeitos pelo tempo.
Para pedir a força de poder viver
sem beleza, beleza, sem força e sem desejo,
enquanto continuamos juntos
até morrer em paz, os dois,
como dizem que morrem os que amaram muito.

- Jaime Gil de Biedma
(tradução de José Bento)
in Antologia Poética, Cotovia

Sem comentários: