Lobos concatena poemas de Golgona Anghel (entretanto
publicados em Como uma flor de plástico
na montra de um talho), de David Teles Pereira («Friedhof der Namenlosen»
integrou o volume colectivo Nós, os
desconhecidos e os demais poemas, reescritos para este volume, tinham sido publicados
no n.º 6 de Criatura) e de Diogo Vaz
Pinto (com excepção de «Lobos», que integra Bastardo,
todos os poemas são inéditos). A obra começa com um poema cuja função é
justificar o título da obra e nem tanto explicar o tema comum a todos os
outros. Parece-me que o título deixa transparecer a amizade – o sentido de
grupo, a partilha de uma comum mundividência – que entre os três poetas (civis)
se estabelece, apesar de um desejo, expresso no primeiro poema, talvez escrito
pelos três, de que os «fracos» (poetas?) fossem condenados por uma poesia feroz
a um «recolher obrigatório» (p. 9). Os poetas são lobos também pelo que torna
feroz a poesia: a vigilância incansável do animal (foi Gilles Deleuze quem
comparou o escritor ao animal nestes termos). Ou ainda, como disse José
Rodrigues Miguéis a propósito de Herberto Helder: «o talento é, apenas, a
coragem de o ter.» E de resto, como alguns animais, também estes lobos marcam o
seu território: «entre lobos / traçar a mijo o novo tratado de / tordesilhas
/em tempos de afanosa / indigência» (p. 11). Este poema enuncia uma certa
insurreição contra «os vagares das galinholas» (p. 13) – uma citação de Photomaton & Vox –, dos poetas que
dão corda à musa e que não encaram o mundo na sua crueza. E já agora, este
poema também se insurge contra as boas maneiras – sobretudo em questões de
Arte. Penso assim que o sentido da citação é ligeiramente deslocado, uma vez
que no texto herbertiano é assumida uma ideia de poesia enquanto descarga de
energia de efeito medusante, e não apenas como processo de assassínio da
tradição por parte de um poeta socialmente desvinculado («a poesia é feita
contra todos», escreveu também Herberto Helder). Assim, o primeiro poema de Lobos revela ser exasperante não só que
galinholas mimetizem artes poéticas já repassadas, como que uma geração esteja
mergulhada numa cultura atávica. Nesta pequena cena do ódio, os alvos também
são muitos, o discurso é por vezes desconexo e fragmentado, devido à ausência
de pontuação e a cesuras intempestivas. O poema fecha anunciando a hora de
qualquer coisa, talvez a da escrita dos poemas que compõem este livro. Eis os
lobos, os que fazem da poesia um trabalho noctívago feroz, fazendo jus a
Agustina Bessa-Luís, que certa vez disse que ou escreve ou mata alguém: «poesia
sem ânimo é uma merda / mas um ânimo feroz / que precise matar e só assim /
coma trepar / mas violentamente / a cadeia alimentar tomar / as noites a sério
uma / a uma conferenciar com todas as luas / uivar longamente entre a tradição
/ para resgatar a nobre linhagem / a antiga pura / identidade sumptuosa» (p.
9). Uma última reflexão lupina: a epígrafe de Saint-John Perse que encerra o
livro irmana a poesia com a ciência, pois ambas buscam um mistério comum,
relativamente formulável, sendo que são ainda sugeridas pelo menos as seguintes
duas ideias: o poeta ocupa-se do desenvolvimento moral do homem, de que o
cientista se alheia, servindo-se de faculdades eidéticas; há uma luta pela
verdade, isto é, verdades lutam umas contra as outras, o que sugere que todo o
saber é volúvel e que a validade dele depende da força com que é imposto, e não
necessariamente da cientificidade dos argumentos em que se ancore.
Singularidades poéticas
Cada poeta exibe a sua voz singular. Lobos diz respeito sobretudo a um ethos partilhável, não propriamente a um tema que fosse comum a
todos os poemas que integram o livro. Segue-se um resumo sucinto do que sejam
essas singularidades poéticas.
Nos poemas de Diogo Vaz Pinto, podemos reencontrar um sujeito
permeável ao exterior e que procura uma identidade no meio de destroços,
dizendo também como este consegue ser país um assassino (Joaquim Manuel Magalhães). O poema obedece ao seguinte
princípio de construção: comporta versos de outros autores, sinalizados a
itálico (Manuel António Pina também o fazia, indicando porém no final do livro
os nomes dos autores pilhados). Relembre-se a lição de Eliot: os poetas fracos
copiam; os fortes roubam. Na poesia de Golgona Anghel, quando os poemas não
revisitam, em registo paródico, obras de autores canónicos (verbi gratia, Edgar Allan Poe e São
Lucas), são assumidas personae: cidadãos
indignados, comediantes de rua, trabalhadores. Há a hipótese de esta poesia se
tornar um inquérito kafkiano, revelador do absurdo que habita a nossa
contemporaneidade em queda. Já David Teles Pereira elabora uma poesia
culturalista, a pender para a narrativa, que revisita episódios históricos e
que se serve da filosofia como ferramenta hermenêutica para mais cabal
compreensão – também política – daquilo que entendamos como mundo.
Alguns versos
«Livres de perucas, de
guilhotinas e cavalos,
temos um leque de ideias para
publicidades e tatuadores.»
(Golgona Anghel, p. 20)
Antes do mais: esta poesia sabe-se em contexto pós-aurático,
incorpora realidade mais prosaica, como fica lexicalmente visível, pelo caminho
levando a cabo uma derrisão não só do estético como dos sentimentos açucarados
esperados pelo leitor de poesia. Golgona não cede ao bom gosto médio, nem que a
expensas da perda de autonomia poética, para um mundo de economia a cada dia
mais agressiva, e do uso de um português demótico. Serve-se, por vezes, de
aforismos: a entropia rarefaz o sentido. Hoje as ideias não se combatem através
da guilhotina. Cortam-se cabeças com slogans publicitários, com o mercado
despudorado (todos têm uma tatuagem, ela é acessível a cada vez mais gente).
Decapitar desta forma é mais eficaz e mais limpo. Portanto, não sei se
estaremos livres de qualquer coisa, ou se estamos ante outras formas de
subjugação.
«e nunca são as tuas ideias o
que os insectos querem,
é o teu cadáver.» (David Teles Pereira, p. 24)
Andamos nós na videirunha
esquecidos de que temos corpo. Os insectos sabem ao menos o que é essencial: o
teu cadáver. É com relutância que nos confrontamos com a nossa limitação,
esbaforidos em busca da ideia mais rútila, esquecidos do corpo, que acabará por
vergar a nossa vontade, apagar a nossa interioridade. Já não seremos mais descontínuos,
o nosso corpo será devolvido ao ventre da mãe: a vontade de poder é fraca.
«Vamos falar sobre como
entramos no terraço
depois de um século em
abandono
e sobre como estas estações
são um só lamento.» (idem, p. 25)
Cada estação é a prossecução dum ininterrupto lamento. Não há
propriamente estações: elas são um. A destituição subjectiva como equanimidade.
Podemos falar daquilo que ninguém fala: é essa a nossa tarefa, temos tratado o
século passado com ligeireza, e nem estaremos dispostos a admitir que o que
distingue para já este século é seguir-se ao século XX. Uma possível pergunta:
se estivéssemos em águas-furtadas, de que falaríamos? A memória é privilégio de
príncipes.
«Esta língua é um lugar
perfeito e, por isso,
inóspito. É como um
cemitério,
há séculos que andamos a
caminhar descalços sobre corpos.» (idem, p. 26)
A perfeição não é habitável. Com autorização do deíctico, a poesia,
quando estabelece uma relação não-metonímica com o mundo, torna-se espaço
transcendente, bálsamo nietzschiano. É impossível coincidirmos com o que somos,
sendo a língua pertença do outro por excelência. Existe uma alienação
originária jamais remível. A língua é verdadeiramente heterónoma, pertença de
todos e de ninguém realmente. Na verdade, a perfeição é concessão imaginária ao
outro – quando não por politesse, por
auto-comiseração. Ainda assim, é inferível dos versos uma origem em que o mundo
fosse dito por ele próprio, que não pela língua que barra o sujeito.
«Aqui morre-se de uma morte
incerta
e senil, morte que falha e se
esquece.»
(Diogo Vaz Pinto, p. 29)
Somos entrados onde se morre, partilhando o espaço do poeta. Todos
estamos aqui. Dizem os versos desse presença ubíqua da morte. Em alguns dos
poemas de Diogo Vaz Pinto, as tabernas e os bares são locais irremediavelmente
marcados pela perda – os ecos das leituras de Manuel de Freitas fazem-se sentir
com frequência. Neles, encontramos os que não têm voz, os milhares de anónimos
cuja morte – cuja vida – é ignorada. Num poema como este donde são extraídos tais
versos podemos deparar-nos com algum ser humano caído em algum buraco. Ao dar a
ver esta morte quotidiana, poemas como este dizem ser essencial resistir ao
individualismo mais altivo, reconhecendo-se o sujeito na alteridade,
diluindo-se o sujeito devido ao compromisso com o outro que é nossa
responsabilidade primordial. É também a noite, o tempo dionisíaco, que propicia
a diluição da individualidade, da racionalidade e da competição que ambas não
raro implicam, conduzindo o sujeito lírico à imersão no informe que o mundo é.
O poeta encarna a figura do flâneur,
para quem a cidade por vezes é um exílio percorrível (andando preso em
liberdade pela cidade) e que ora se alarga em paisagem, ora se cerra, focando
rostos tolhidos, pertencentes a um povo acostumado à partilha de servidões:
«Rostos insuportáveis de ternura,
cheios
da fome e dessa sede antiga
que nos
irmana. Fundidos na ressaca perpétua
de um império humilhado, são
nossos
esses corpos frios que
compõem o
fundo dos vossos postais.
Anónimos
e, justamente por isso, tão
familiares.» (idem, p. 34)
Num poema de Golgona, a persona
lírica a princípio afigura-se um leitor que faz da leitura um exercício
anatómico, dissecando o corpo das personagens. Abrindo-as, provando-as com o
dedo como se prova uma melancia. No entanto, não podemos fazê-lo mutatis mutandis com o outro. Terá que
forçosamente haver uma distância, o outro não é necessariamente penetrável, ou
pelo menos não o é sem o seu consentimento, sem que ele se dê. A compreensão é
uma dádiva. E assim se experiencia a resistência rebarbativa do mundo, numa
perspectiva feminina do homem encerrado em si mesmo e atacado pelo exterior:
«Regresso a pé, apanho chuva,
desprezo putas, cumprimento
desconhecidos.
Regresso encolhido de frio,
com a cara suja, os pés
molhados.
Dás-me uma sopa quente
E adormeço na cadeira da
cozinha
encostado à porta do forno
enquanto me passas a ferro a
camisa
para o dia seguinte.» (Golgona Anghel, p. 36)
O mundo não se deixa agarrar. Nem com truques de prestidigitador.
Aliás, o prestidigitador, como o poeta, é insciente das próprias falhas do
mundo – e de si, primeiramente. Daí que a poesia de Golgona expurgue o
sentimentalismo pela remoção da forma, nem cedendo tão-pouco a qualquer espécie
de gravitas melancólica. A arte não
alcança ser realidade, muito menos a melhorará. Em tom aforístico (o insight poético) e por vezes hermético,
com a cesura a ceder ao ritmo imposto pela frase, diz-se desta «civilização em queda»,
sem contudo se entrar em «detalhes». Isto é, a realidade diz-se a si mesma e é
irredutível. Como acontece num dos sonhos do senhor Calvino de Gonçalo M. Tavares, há a sensação de que estamos
a cair: o caos é o funcionamento das coisas, percepção que derivará porventura
de as coisas obedecerem a uma sucessão estocástica, e apenas nos resta procurar
uma mínima ordem, ou então a «medida certa» da agonia. Eis os textos:
«Não gosto de contar os desastres em detalhe
mas, se quiserem, posso escrever uma lista com nomes e camas.
Sou bem capaz de molhar o pezinho na história da barbárie.
condecorar o medo,
cortar-me a mão com que limpo as feridas
de uma civilização em queda.
Posso perfeitamente
ir afiando o gume da esperança
com a flor branca de um cancro.
Sou, em definitivo, este comediante de rua
que serve a desconhecidos,
em copos pequenos,
a medida certa da sua agonia.
Descobre sonhos
onde outros só encontram coelhos.
Hoje, por exemplo, quando tirou as luvas,
viu que lhe faltavam dedos.» (Golgona Anghel, p. 42)
|
«Do alto de mais de trinta andares, alguém atira da janela abaixo os
sapatos de Calvino e a sua gravata (quem?). Calvino não tem tempo para
pensar, está atrasado, atira-se também da janela, como que em perseguição.
Ainda no ar alcança os sapatos. Primeiro, o direito: calça-o; depois, o
esquerdo. No ar enquanto cai, tenta encontrar a melhor posição para apertar
os atacadores. Com o sapato esquerdo falha uma vez, mas volta a repetir, e
consegue. Olha para baixo, já se vê o chão. Antes, porém, a gravata; Calvino
está de cabeça para baixo e com um puxão brusco a sua mão direita apanha-a no
ar e, depois, com os seus dedos apressados, mas certeiros, dá as voltas
necessários para o nó: a gravata está posta. Os sapatos, olha de novo para
eles: os atacadores bem apertados; dá o último jeito no nó da gravata, bem a
tempo, é o momento: chega ao chão, impecável.» (Gonçalo M. Tavares, O senhor Calvino, p. 9)
|
Lobos terminará com «Lobos», poema de Diogo Vaz
Pinto que de certa forma, ou mais propriamente, de outra forma, refaz alguns
dos princípios éticos, quase todos modernistas, enunciados no poema de ouverture: o escritor maldito; a poesia como
actividade improdutiva; a poesia como epistemologia mas sobretudo ontologia; a
baudelairiana descida aos infernos, num mundo marcado pela perda. Claro que
tudo isto encaixa com mais propriedade na poética de Diogo Vaz Pinto, sendo
discutível a partilha destes princípios por David Teles Pereira e Golgona
Anghel. A respeito do último princípio que enunciei, leiam-se os seguintes
versos:
« [...] Corpos
que vão escrever, dobrados à
luz
da lua – a grande decapitada
–, rolando
de quarto em quarto,
a assentar-nos nos ombros». (Diogo Vaz Pinto, p. 45)
Depois do convívio em torno de uma mesa, os poetas vão escrever. A
escrita é actividade solitária, nocturnamente lupina. A imagem da lua
decapitada é sintoma da castração: ao poeta apenas resta encher com o vazio que
as palavras são um outro vazio: o mundo humano – como quem diz, não-mãe – que o
mundo é.
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