quinta-feira, junho 20, 2013

 


Não há nada mais repulsivo do que o sentimento gregário. Nada me repugna mais do que a pessoa incapaz de estar sozinha. Quem não sabe estar consigo, talvez não saiba estar com os outros. É uma gente, a gregária, que vive a fugir de si própria, e do essencial assombro da existência que consiste na consciência da nossa finitude. E gente dessa é mais facilmente levada a cometer os crimes mais imperdoáveis.

Individualmente, é-me mais simpática a pessoa que sofre do que a que festeja. E não porque a ideia de celebração me seja antipática. É o que habitualmente se celebra, e como, o que se me torna repelente. O estado de multidão é sempre regressivo. É o retorno à horda, à manada. Desperta em cada um o que tem de pior. A mesma pessoa, quando afastada do rebanho, torna-se de imediato uma criatura, pelo menos em aparência, mais digna. Descobre o silêncio e a solidão: grande vitória para a sanidade pública.

Mas não é frequente isso. O que é frequente, e cada vez mais, é ver como as pessoas são incitadas a expor publicamente a sua vileza e o seu vazio interior. Chegou-se a um estado de degradação moral que é alheio a toda ideia de hierarquia. A vulgaridade já não embaraça ninguém, se não obstou a que o seu detentor alcançasse a notoriedade e a riqueza, que é tudo a que o vulgo consegue aspirar. Cada vez mais o domínio público se torna o espaço da cretinice, do frenesi e da insensatez. Outrora ainda se fingia respeitar a inteligência, a cultura, as atitudes cívicas e morais. Ninguém se atrevia a desdenhar publicamente a cultura ou a ideia de formação intelectual. Havia decerto nisso uma grande dose de hipocrisia. Mas a hipocrisia não é o mais baixo a que se pode descer: pelo menos revela ainda má consciência em relação a algo que no fundo (ainda que de forma meramente supersticiosa) se considera superior: os valores morais, a ideia de justiça, a honorabilidade da inteligência. Quando já nem hipocrisia existe, isso significa que só resta o cinismo. E o cinismo reside na constatação de que o sucesso mundano em nada depende da inteligência e da probidade, e no regozijo perante esse facto, que assume então visos de “libertador”.

O mundo está hoje tomado pelo cinismo, pela fraude e pela mentira. A linguagem da publicidade. Não é por acaso que estratégias publicitárias acabaram por contaminar o círculo da política. Na medida em que vivemos rodeados de pessoas que execram a profundidade, o primado da imagem (isto é, do superficial) exerce-se à custa da palavra (isto é, da inteligência, do diálogo e da persuasão). Onde só a imagem, a opinião, conta, a inteligência é sufocada.

No meio de tudo isto, a vulgaridade tornou-se normativa. É isso o que de pior tem a democracia. Ser um regime político manietado pela pressão vinda de baixo, do vulgo, do resíduo instintual e mesquinho no fundo de cada um. O grande número sanciona a mediocridade, define como interessante e valioso apenas aquilo que compreende, ou seja, aquilo que serve os interesses mais básicos e imediatos de um ser que vive confinado aos mais rasteiros desejos e a uma vida espiritual inquinada. Com isso, não se sabe exigir mais do que conforto, diversão, embrutecimento. Que essa forma de existência decaída, entalada entre os rodízios do consumo e da produção, seja estimulada por quem exerce o poder (que é económico mais do que político) constitui o maior factor de perversão do sistema democrático. Embora não haja absolutamente nada de original nestas constatações, é importante recordá-las a mim mesmo, de vez em quando.

(6 Nov. 2000)

- José Miguel Silva
(retirado daqui)



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