domingo, junho 09, 2013

 
AS IDEIAS SEM PALAVRAS

 

Os critérios para identificar hoje uma cultura de Direita e uma cultura de Esquerda, e os modos de pensar que lhes correspondem, adquirem nitidez – ausente noutros domínios - quando se trata de questões com uma forte dimensão biopolítica, que dizem respeito à vida privada dos cidadãos. Oswald Spengler, o autor de O Declínio do Ocidente, escreveu por volta dos anos Vinte do século passado uma frase que foi elevada a paradigma da cultura de Direita: “A única coisa que permite a firmeza do futuro é aquele legado dos nossos pais que temos no sangue: ideias sem palavras”. Esta afirmação de Spengler sugere então que a máquina mitológica correspondente à ideologia de Direita é, no fundo, uma máquina linguística que funciona disseminando fórmulas, frases feitas, que parecem claras mas não requerem um exercício de compreensão, na medida em que nelas as palavras são reduzidas a intermediários de algo que existe antes de todas as palavras: por exemplo, a “natureza” (e, muito especialmente, a aceitação de que existe uma “natureza humana”), que leva a uma inclinação reverente perante a “força das coisas”. Veja-se como a argumentação “naturalista” entra em acção nos debates sobre adopção, casamento entre pessoas do mesmo sexo, etc. A cultura da Esquerda, pelo contrário, implicou sempre uma viragem linguística, um “linguistic turn”, na medida em que os seus conceitos e ideias eram consubstanciais às palavras, eram inventados nelas, nelas ganhavam corpo e factualidade, e não tinham outro instrumento para se tornarem efectivas e performativas. Isto não significa que a Esquerda não engendre a máquina linguística que cria uma cultura caracterizada pelo vazio. Esse é, aliás, o seu pecado mortal, aquilo que faz com que fique imobilizada nas suas mitologias e acabe por funcionar em acordo metodológico – talvez pudéssemos dizer “epistémico” - com a Direita. Mas enquanto para a cultura de Esquerda se trata de um acidente, de um desvio (por mais frequente que ele seja), para a cultura da Direita a máquina mitológica não é algo contingente: é essencial. É essa máquina que fixa, numa ideologia dos “valores”, indicados geralmente por palavras com inicial maiúscula, as normas do comportamento social e familiar, do saber, do ensinar, do comandar, do obedecer. Trata-se, em suma, de uma cultura feita de autoridade. E essa autoridade vem da “lição da natureza” ou – o que é quase a mesma coisa – de um passado que é ideologicamente modelado para servir um modo de usar, isto é, para fins cinicamente políticos – quase sempre dissimulados numa reclamada apolitia - ou para a manutenção de uma ordem que deve permanecer inalterável. A linguagem das ideias sem palavras tem a seu favor a maior parte do património cultural, que, mesmo quando é encarado de maneira neutra, dificilmente esconde o resíduo cultural da Direita, na medida em que esta se funda na relação com o passado – que, nas versões mais extremas da Direita, fica reduzido a uma papa uniforme. Ora, se caracterizarmos assim a cultura da Direita, se aceitarmos a sugestão spengleriana das “ideias sem palavras”, então talvez cheguemos facilmente à conclusão de que, à Esquerda, o discurso (pelo menos aquele que é mais audível e irradia em mais direcções) é igualmente tecnicizado. Perceber como funciona a máquina mitológica é indispensável para a cultura das ideias que exigem palavras.


- António Guerreiro
in Ípsilon (7.06.2013)

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