segunda-feira, maio 06, 2013

Os restos de um naufrágio

A Luis Antonio de Villena


Umas centenas de livros, uma casa na praia,
móveis que o coração foi envelhecendo
e tornaram o mundo hospitaleiro,
fetiches de alguma viagem, talismãs
que não puderam nada contra o mundo,
um punhado de cartas de uns quantos amigos,
alguma carta escondida, inconfessável,
papéis ordenados, papéis sem sentido,
medicamentos, quadros, roupa usada
e roupa por usar, várias contas bancárias,
uma viúva aturdida, um automóvel,
uma amente aturdida, um pente com cabelos,
uma caligrafia que perdeu o pulso da sua mão,
um odor familiar a caminho do vazio.

Este é o inventário dos bens de de um morto,
e como todo o censo e todas as listas
supõe um exercício de modéstia.
As nossas coisas, que às vezes pareciam preservar-nos,
habitar-nos o mundo em que habitávamos,
num só golpe de vista convertem-se
num prolixo catálogo de absurdos,
rotas apagadas de um mapa inexistente,
pássaros dissecados cujos olhos
não sabem recordar um céu que já ardeu.

- Carlos Marzal
in El corazón perplejo, Tusquets

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