quinta-feira, maio 16, 2013

morrer de vez em quando
é a única coisa que me acalma.


Paulo Leminski


Quando te restam apenas uns palmos
de dia e a memória começa a fazer
efeito, retiras as tuas porcarias
de caixas – herança que deixas de ti a
ti próprio – e levantas essa âncora de
restos para regressares à malha
empedrada dos caminhos
. A voz lenta
que te envergonha sossega enfim
entre pássaros de umas horas já caladas,
e o céu abandona-se a uns astros cegos
como tu te afundas nuns bolsos tristes
entre ruas num recorte sonâmbulo
onde os cães derrubam pequenos castelos
de lixo enquanto o vento se abre nas
goelas de lata. No pátio de uma escola
abandonada, sem rumo no ar,
um cheiro de lembrança torna-se
enjoativo e cansa. E a fonte, tenteante,
repete um som de pedra, o mar vazio
que no escuro te embala.

Ao fundo, a luz dos antigos portos
treme do comércio onde o teu erro
há-de encontrar mil ecos.
Vozes submersas, suaves, e o dilacerado
convívio desta corte vagabunda.
Frases absurdas e líricas, um teatro rouco
que sempre te acolhe e te oferece
um papel a uma hora em que nada
preserva já intimidade. Asilados
em cafés, vivemos e morremos mortes
e vidas de outros
, histórias tão sem
destino, tudo o que mais nos expõe
como alvos fáceis para o esquecimento.
Aí, bebemos e vociferamos enquanto
a morte não alcança a nossa idade
nem apaga estes sinais.

Tudo o que se move, esse olhar
delinquente acompanha. As velhas sombras
de canções derramadas sobre o sangue.
Assim, a meio coração, revejo-te por instantes.
Esse calor delicado enquanto procuro
o teu rosto, o perfume obscuro e o grão
da voz, essa paz que me diz
que estás melhor e como tudo ficou bem
depois de mim. Oiço-a como se
enterrasse uma pedra na carne,
e estimo os dias que me levará para
desfazê-la em cinza. A dose perfeita
cambaleando no sangue enquanto
a dor canta entre uns passos distraídos.

Porque não tenho já razões para
adormecer, porque todos os sonhos
me aborrecem, porque com o sono
nenhuma emoção se fixa, porque
prefiro gemer de alucinação e voltar
aos mesmos lugares para ver o sol –
esta luz que, vinte e sete anos depois,
me surge ainda como um escândalo.
Por isto e aquilo, com o tempo,
vim a achar a vida tão imbecil como eu.

Assim, a cada dia livro-me de outra
pele, quebro o reflexo, e abandono estas
escamas de vidro enquanto me desfaço
para seduzir outra morte.

Sem comentários: