quinta-feira, maio 23, 2013

H


1.

Um telefonema comum ao anoitecer me avisa que o estado de minha mãe no hospital onde está internada há duas semanas é gravíssimo. Pelo choro da mulher do outro lado da linha posso acrescentar mentalmente: irreversível. Respira com ajuda de aparelhos. A princípio reajo bem, chego a dizer para a mulher chorosa do outro lado da linha que então devemos estar preparados. Ela me diz soluçando que está preocupada comigo, que ela tem seu marido e seus filhos junto dela o tempo todo, mas que agora estou sozinho como nunca estive antes. Digo-lhe que está tudo bem e desligo o telefone muito mais calmo do que era de se esperar. Ontem de manhã, andando pelo centro da cidade, vazio como em todo fim de semana, pensei muito em minha mãe ao me emocionar mais uma vez com alguns velhinhos que silenciosamente perdiam um longo tempo diante das estantes de um sebo, e admiravam certos livros antigos e cheios de manchas como seus rostos, e os acariciavam com mãos que tremem como se eles fossem toda a sua vida. Quantas histórias deveriam estar se passando ali. Acho que minha mãe nunca leu um livro inteiro em sua vida. Eu li todos os livros da minha infância sentado ao pé dela. Um olho nas letras e ilustrações, o outro no movimento de suas sandálias e panturrilhas no pedal de uma máquina de costura Singer verde.
 
2.

Passeio agora pela mesma casa de minha infância, adolescência e vida adulta, consolado pela idéia do descanso que ela terá de agora em diante. Sem precisar de ajuda para levantar da cama, sem precisar de ajuda para tomar banho e até para a higiene íntima. Passeio pela mesma casa de então, mas começo lentamente a perceber um sinal que me alarma: não tenho o menor controle sobre os meus passos e me será impossível parar de caminhar de um lado para o outro da casa por vontade própria. E a cada volta observo com cada vez mais apreensão as paredes, não sei se pelo temor de que me faltem de repente ou de que comecem a se estreitar sobre mim. Descubro desse modo que não é assim tão fácil livrar-me de um medo que vem sendo o meu medo absoluto desde os quatro anos de idade.
 
3.

A idéia apavorante da morte de minha mãe, pelo que vejo, ultrapassou a superfície gelada e está fazendo estragos profundos em regiões que desconheço e sobre as quais não tenho qualquer controle. E contudo estou tão calmo. Corro até este computador para escrever e por medo de perder a razão. Suspeito não do estardalhaço dos nervos, que não há, mas de seu contrário sinuoso, a idiotia. Sinto que se conseguir escrever agora o que se passa comigo estarei salvo, repito isso a mim mesmo e o velho refrão de que onde há obra não há loucura, onde há loucura não há obra e começo a escrever. A idéia absurda de um obsessor que se aproveitaria desse momento de pane em minha mente me passa pela cabeça quando algo em mim me diz que devo queimar todos os meus cadernos no quintal de casa, numa grande fogueira, um rito de passagem. Agem em mim um medo (irreal) de não sobreviver à sua morte e de que esses cadernos sobrevivam a mim, com todo o mal (real) que podem causar a pessoas que amo. Começo a rir do meu exagero e acho que isso já é um bom sinal. De todo modo, apago do computador muitos arquivos antes de começar a escrever.
 
4.

Antes de perceber que minha mãe sofria de Alzheimer eu me irritava com ela todas as noites pelo fato de sempre me perguntar se meu pai já havia voltado para casa do trabalho. Assim, todas as noites, durante alguns meses, fui obrigado a lhe explicar que ele já tinha morrido havia dez anos. E todas as vezes era como se recebesse a notícia pela primeira vez. Umas cem vezes lhe dei, ao anoitecer, com um contrafeito beijo de boa-noite, a notícia de que seu marido tinha morrido. Cem vezes viúva. Seu marido morreu cem vezes, mas só para ressuscitar no dia seguinte, quando, invariavelmente, antes de ir se deitar, me perguntava se ele já havia voltado para casa. Cinco anos depois de diagnosticado o caso, eu já estava completamente acostumado e não estranhei quando passei a ser chamado primeiro de irmão, depois de marido, e nos últimos tempos, de pai. Pouco antes da crise que a levou para o hospital, Helena lhe perguntou quantos anos tinha: quinze, assegurou. Apesar de morar há cinqüenta anos nesta casa na Ilha do Governador, ultimamente acordava de madrugada pedindo para ser levada para sua casa de verdade, no Méier, onde morou quando adolescente. Coloco o Quatuor pour la fin du temps, de Olivier Messiaen, e passo a esperar o telefonema.*

________

*O telefone tocou às 11:30
 
BEIJO

1.

Depois de encaminhar "H." por e-mail para alguns amigos, no intuito de avisá-los da morte de minha mãe e consciente de que não conseguiria escrever outra coisa qualquer sobre o assunto, descobri que na pressa de escrever para não enlouquecer, acabei revelando o que até o pequeno Stephen Dedalus, quando ainda vestia calças curtas, já se envergonhava de ser levado a admitir frente aos colegas de internato. Quando eu me encontrava em casa à noite, mais precisamente no horário em que minha mãe era posta para dormir por suas acompanhantes, às 20 horas, eu costumava dar-lhe um beijo de boa noite, no qual ela parecia encontrar agora menos a continuidade de um costume antigo do que certa doçura narcótica que eu não lhe sabia recusar. Dirigia-me ao seu quarto e costumava encontrá-la já quase adormecida. À luz reduzida e permanente do abajur, eu beijava a testa daquele imenso inseto preso no âmbar.
 
2.

Semanas depois, quando consegui reler "H.", ou lê-lo pela primeira vez destacado do ato de escrevê-lo ou reescrevê-lo, senti-me acaso no mesmo beco sem saída de Dedalus, arremessado na vala suja da vergonha? Não. Mas perguntei a mim mesmo o que eu recebia ali? Algo cinético e fluido.
 
3.

Durante o velório beijei sua testa várias vezes, o rosto molhado de lágrimas, mas sem desespero nem a fixação do teatro do século XVII pelo falso cadáver que desperta. Antes de ser fechado o caixão, dei-lhe ainda um beijo na testa e sussurrei-lhe: "Este é o último, viu? Muito obrigado pela paciência. Te amo." E beijei a lona.
 
4. (Imitado de um velho chanceler florentino)

Mesmo que a alma não morra - o que não desejo ou creio - e o corpo ressuscite em outras mil formas - o que desprezo -, o composto harmonioso que fazia de H. minha mãe ficou destruído para sempre.    

Motores

1.

A. e C. necessitam ouvir música para escrever, já M. e W, requerem nessa hora todo o silêncio possível, para obedecer, provavelmente, a algum ritmo interno. Durante os últimos anos eu escrevi ouvindo, pelas manhãs, vindo do seu quarto, contíguo ao meu, o motor da máquina de hemodiálise e seu estrondo de lava-roupas antigo, por vezes interrompido por agudos sinais cuja função seria advertir a enfermeira responsável por você, ocupada em tomar café com bolinhos na cozinha, de que algo não ia bem com a máquina ou em seu corpo.
 
2.

Nos primeiros meses eu tentava abafar o barulho colocando música alta nos fones de ouvido, mas isso atrapalhava ainda mais a escrita, e por acréscimo, transformou o meu medo (de ouvir o sinal de alarme disparar dizendo que algo ia mal no delicado processo de depurar o seu sangue) em meu pânico (de não ouvi-lo disparar dizendo que algo ia mal no delicado processo de depurar o seu sangue, e de que tampouco o ouvisse a enfermeira responsável).
 
3.

Acabei aprendendo a me virar com o rugir dessa turbina, com seu apito estridente sempre (in)esperado, nas manhãs de segundas, quartas e sextas. Como o Alzheimer não lhe permitia gravar na mente a importância de permanecer quieta durante as sessões de hemodiálise, você logo passou a ser atada à cama.
 
4.

Com sua morte, também esse som não participa mais do sistema de rumores desta casa, sistema que agora praticamente só inclui disparar de descarga, fechar e abrir de portas e janelas, toque de telefone, teclado de computador dentro da madrugada, jato de torneira, ducha contra piso vermelhão, bater de cabides entre si ou no cimo do armário quando puxo a roupa com força e pressa demasiadas, fervilhar de água dentro da chaleira para o chá, batida de aparelhos descartável contra pia, minha chave dando voltas na fechadura. Às vezes, num ônibus antigo, rumo ao Centro, me volta o motor que te adiava esse buraco na terra.
 
Ritual

1.

Depois de quase duas horas de caminhada cega ao deixar o cemitério, caminhada durante a qual não sei o que terá me impedido de morrer atropelado, como afinal coube a Roland Barthes, a fome tratou de apurar os meus sentidos e já posso até distinguir na informe massa escura do universo, uns cinqüenta metros adiante, o letreiro do Habib's. Pela trajetória que suponho ter feito, devo ter passado por pelo menos uma dezena de lugares mais interessantes para comer, alguns deles com letreiros não menos chamativos, mas se é justamente diante do pseudo-árabe que minha visão tornou a se adensar, julgo que aqui devo realizar-se a cerimônia que planejo.
 
2.

Partilhado com uma dezena de ruidosos adolescentes festivos nas mesas circunvizinhas, meu banquete fúnebre será também esse campo elétrico que sinto ao meu redor. O calor aqui dentro é perturbador e minhas lembranças de H. flutuam aqui como a fumaça de um cigarro soprada dentro da bola de chiclete de um adolescente. Em cada um deles vejo o filho que me negou três vezes: Ele não é meu pai! Ele não é meu pai! Ele não é meu pai!*

*Em dado momento, do equipamento auto-motivo de um Maverick reformado passou a ser exalada uma música que fez com que quase todos os jovens ali presentes se atirassem a uma espécie de dança entre as mesas. Os participantes realizavam uma ronda sem fim, onde sempre se alternavam um jovem muito sorridente e outro extremamente sério. Os sorridentes conduziam o jogo e eram na verdade os únicos a dançar. Cada par era formado por um jovem, garoto ou garota, e na verdade bastante assexuado e bulímico, e por outro jovem, garoto ou garota, aparentemente estupefato. O que dançava parecia estender a mão para aquele que queria arrastar em sua dança, mas que ainda não se havia submetido inteiramente. A beleza da cena residia no contraste entre a incrível potência rítmica dos que dançavam e a paralisia dos que não.
 
3.

Assustadora simultaneidade: no exato instante em que dou início a meu processo de mastigação da insossa massa branca de uma esfiha me dou conta de que não procurei me informar sobre aquilo que, no futuro, talvez me será, obscenamente, questionado. Ou seja, se no girar dos dados imaginários, à minha mãe lhe coube a morte boa ou a morte má. Tal simultaneidade me faz desconfiar, e por um segundo ter a arrepiante certeza de que o gesto físico da mordedura na massa gerou o pensamento tanto quanto provocou, através do conseqüente rasgão na esfiha, a liberação de uma nuvem de vapor do recheio de carne morta. De meu pai fiquei sabendo que gritava enfurecido na cama do hospital e tentava esmurrar os médicos que o atendiam até que o fulminasse um enfarto. Será isso a morte má? Senti na época orgulho desse triste Jacó em luta com seus anjos da morte, impermeável a qualquer tipo de serenidade, como sempre foi em vida. Se bem a conheço, minha mãe não reclamou muito nem esboçou qualquer gesto em sua hora, o que quer que estivesse sentindo. De todo modo, e ainda mais orgulhoso, imagino-a em minha fantasia me dizendo:
 
4.

Hilda:

- Comparada com a larga eternidade de nada sentir, nada provar, nada tocar, nada ver e ouvir que nos espera, a morte no sono, como dizem que coube a Chaplin, vale o que valem as dez costelas partidas, as orelhas arrancadas, os dedos decepados, a laceração horrível entre o pescoço e a nuca, a equimose larga e profunda nos testículos, o fígado lacerado, o coração lacerado, o rosto inchado e irreconhecível, as hematomas, última forma física assumida por Pasolini nesse louco planeta que agora, para você, gira também sem mim.
- Carlito Azevedo
in Monodrama, 7 Letras

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