Numa conferência de 1919 sobre A Política como Vocação (ou Profissão, já que a palavra alemã Beruf pode ser traduzida das duas
maneiras), Max Weber elaborou uma teoria do “chefe” ou “guia” político,
resumindo as suas qualidades num denominador comum a que chamou “carisma”. A
dominação carismática sobre um séquito, segundo Weber, está ligada a uma
categoria vazia, mas bastante activa, que é o “prestígio”. E dizemos que é uma
categoria vazia porque tanto pode vir de uma autoridade adquirida como da
imbecilidade instintiva e da demagogia. O chefe político que pretende exercer
um poder carismático de que já não dispõe ou nunca dispôs serve-se – diz Weber
noutra ocasião – de uma proclamação que tem sempre mais ou menos a forma de um
“está escrito, é o que eu vos digo”.
Reconhecemos esta fórmula na declinação
profética do discurso do nosso Presidente da República: “Depois não digam que
eu não avisei”. As teses de Weber sobre a vocação política e o carisma são
fundamentais para a categorização de duas figuras políticas do nosso tempo, o
fantoche carismático e o demagogo, mas são insuficientes para perceber a figura
da nulidade, que é aquela a que corresponde Cavaco Silva, na sua profissão política
(não falamos aqui do homem civil, que não conhecemos, e sobre o qual não
teríamos o direito de falar publicamente). A sua nulidade não é exactamente a
do pequeno-burguês planetário (essa espécie de “Bloom” universal que já deu
origem a uma “Théorie du Bloom”, de um colectivo que dá pelo nome de Tiqqun,
publicada em França, em 2000), mostra-se muito mais resistente a categorias
sociológicas e a características epocais. Para a apreendermos, temos de
recorrer a personagens literárias: devemos pensar em Mr. Chance, criado pelo
escritor polaco Jerzi Kosinsky, numa novela que foi adaptada ao cinema por Hal
Ashby (Mr. Chance, o jardineiro idiota que chega a Presidente dos Estados
Unidos por falar por metáforas que ninguém entende, é interpretado por Peter Sellers),
mas a espécie de nulidade que estamos aqui a tentar caracterizar tem talvez
ainda mais afinidades com algumas criaturas do escritor suíço Robert Walser –
personagens que têm uma curiosa mistura de maldade e de inconsciência de cartoon, como alguém observou. A
nulidade não é apenas intelectual, é quase uma categoria do espírito que merece
bem o nome de Figura, num sentido metafísico. Perante esta figura presidencial
e a sua ostensiva inanidade, devemos perguntar, como Baudrillard uma vez o fez
a propósito de Chirac, se a merecemos. E, à maneira de Baudrillard, talvez
possamos responder que, afinal, tal figura da nulidade só serve para demonstrar
que somos todos nulos, e que a política já não é o lugar nem a vontade de
representação, “o que quer dizer que já não há representação, apenas figuração:
nós, na base, fazemos figuração estatística, e os políticos fazem figuração
televisiva”, diz Baudrillard. Podemos então dizer, seguindo ainda o raciocínio
de Baudrillard, ao falar de Chirac, que a nulidade metafísica do nosso
Presidente da República não tem apenas o poder de dissolver ou não dissolver a
Assembleia da República. O seu poder mais secreto, que ele exerce quer queira
quer não e que lhe advém da sua condição figural e figurativa, é o de dissolver
o próprio povo, na estratégia fatal de uma nulidade recíproca.
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