I / Soneto da loucura
A minha casa pobre é rica de quimera
e se vou sem destino a trovejar espantos,
meu nome há de romper as mais nevoentas eras
tal qual Pentapolim, o rei dos Garamantas.
Rola em minha cabeça o tropel de batalhas
jamais vistas no chão ou no mar ou no inferno.
Se da escura cozinha escapa o cheiro de alho,
o que nele recolho é o olor da glória eterna.
Donzelas a salvar, há milhares na Terra
e eu parto e meu rocim, corisco, espada, grito,
torto endireitando, herói de seda e ferro,
E não durmo, abrasado, e janto apenas nuvens,
na férvida obsessão de que enfim a bendita
Idade de Ouro e Sol baixe lá nas alturas.
II/ Sagração
Rocinante
pasta a erva do sossego.
A Mancha inteira é calma.
A chama oculta arde
nesta fremente Espanha interior.
De geolhos e olhos visionários
me sagro cavaleiro
andante, amante
de amor cortês e minha dama,
cristal de perfeição entre perfeitas.
Daqui por diante
é girar, girovagar, a combater
o erro, o falso, o mal de mil semblantes
e recolher no peito em sangue
a palma esquiva e rara
que há de cingir-me a fronte
por mão de Amor-amante.
A fama, no capim
que Rocinante pasta,
se guarda para mim, em tudo a sinto,
sede que bebo, vento que me arrasta.
III / O esguio propósito
Caniço de pesca
fisgando o ar,
gafanhoto montado
em corcel magriz,
espectro de grilo
cingindo loriga,
fio de linha
à brisa torcido,
relâmpago
ingênuo
furor
de solitárias horas indormidas
quando o projeto a noite obscura.
Esporeia
o cavalo,
esporeia
o sem-fim.
XI / Disquisição na insónia
Que é loucura ser cavaleiro andante
ou segui-lo, como escudeiro?
De nós dois, quem o louco verdadeiro?
O que, mesmo vendado,
vê o real e segue o sonho
de um doido pelas bruxas embruxado?
Eis-me, talvez, o único maluco,
e me sabendo tal, sem grão de siso,
sou – que doideira – um louco de juizo.
- Carlos Drummond de Andrade
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