quinta-feira, abril 25, 2013



Também tenho ido a bares

Ao que parece, a reivindicação da autotelia esmoreceu um pouco em A fábrica. Não deixa contudo de se transparecer do uso de léxico inusitado, da sintaxe por vezes agramatical e da respiração dos poemas, a reivindicação de uma linguagem poética. Para além disso, a poesia de Vasco Gato também engendra imagens insólitas (por exemplo, o poema 2, p. 9), o que a autonomiza, levando, ipso facto, a que o mundo por ela criado por vezes seja bem distinto daquilo que usualmente entendemos como mundo (algo que, nos livros anteriores, terá ocorrido com mais força).
Neste livro, consegue Vasco Gato aliar certa narratividade a algum hermetismo. Como o disse o poeta numa entrevista concedida a Luís Caetano, houve a intenção de que A fábrica fosse mais comunicante de que outros já publicados pelo autor, abrindo-se mais, como mencionado, ao mundo. Talvez o poeta tente cerzir as duas grandes linhas que vêm estruturando a poesia portuguesa moderna e contemporânea, ensaiando uma aventura de linguagem que ao mesmo tempo diga algo do mundo (social, político, cultural) em que vivemos. É um lance arriscado que diz que a mais completa transparência é impossível. Toda poesia vive da metamorfose do que se quer dizer, posto o significado deslize constantemente sob o significante. Como o Lord Chandos de Hofmannsthal, também Vasco Gato duvida da capacidade de as palavras apreenderem totalmente um mundo demasiado esquivo. «A nomeação é a eterna e vã tentativa de conhecer», diz João Barrento, sobre a Carta mencionada. Por seu turno, diz Vasco Gato:

O suborno de que fomos capazes
             apenas nos garantiu
os ossos de um nome caído
              no deserto.

Visa esta poesia, através de um ritmo que nos empurra por vezes a golfadas de ar, mimetizar o pulsar rebarbativo do mundo. Mas que não deixa desta forma de atravessar os temas que os poetas do lirismo figurativo mais têm explorado. A perda, desde logo, como a sentida por um cervo aquando da morte da sua cria (p. 23); a consciência de que as coisas falham, de que a mortalidade é uma dádiva, e de como isso é (um)a religião (p. 13), uma esfera separada da mundana sobre a qual se deve elaborar a liturgia (uma administração sábia da melancolia?):

De um lado ao outro da cidade
– nossa por idades convergentes –
        escancarou-se de repente
        a conspiração
de elementos tão díspares
como: a tua demora,
         a minha precipitação,
             uma mesma música
expandindo-se sobre todos os
            motivos alheios. (p. 14)

Mas o livro abre com a seguinte epígrafe: «Proletaires de tous les pays, je n’ai pas de conseils à vous donner», de Louis Scutenaire. Não só assinala ela o perigo que toda a deriva utópica representa, como isola a literatura num campo autónomo. O dispositivo que produz a verdade e alisa subjectividades, subsumindo-as a uma só voz, é a televisão, através do efeito de hipnose. O resultado será uma massa ruminante, amorfa e insensível, após horas de exposição a descargas de energia. A fábrica é a obediência que todos devem a dispositivos técnicos e à televisão em particular. Também, como o holocausto, racional, organizada, sistemática, letal (Zygmunt Bauman considerou que sem a modernidade técnica o holocausto não teria ocorrido da forma que ocorreu). E se, de facto, serão «necessárias / electrocussões capazes de restabelecer / a biologia» (p. 8), então outro dos efeitos da televisão é a impassibilidade, a absoluta insensibilidade, o transe, isto é, ela gera um efeito zen; a televisão é uma «máquina-buda» (Peter Sloterdijk) que consola – ilusoriamente, diz Vasco Gato – dos males do mundo. «É essa a única dádiva / morrer / e tornar a morrer» (p. 8). Tragicamente, encontram-se sem saída, dificilmente se moverão os que se encontram «soterrados sob / camadas e camadas / de detritos verbais» (p. 8), os que estão encerrados na moldura televisiva. É a palavra, sobretudo a portátil, como dizia Ruy Belo, a provocar esta morte; é o fantasma que ela é, ela que está no lugar da coisa, ela que desvitaliza a substância da existência. Em face disso, do facto de a palavra ser tanto mais sinónimo de morte quanto vise mais ser (equivocamente) comunicativa, é tarefa ética do poeta «a escolha soberana da língua própria, / com sua parte de fogo / e seu emblema de ódio» (p. 30), para que se concretize a «eterna e vã tentativa de conhecer» de que falava João Barrento.

  - Pedro Meneses 

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