sexta-feira, abril 26, 2013


HÁ FESTA NA LIVRARIA

Quanto ao livro, parece que não vai haver a Feira dele no Porto. Esta frase é quase desconexa e bastante arrevesada porque enxerta um título de Mallarmé numa notícia recente dos jornais. E poderia prosseguir com uma paráfrase mallarmeana, dizendo que, segundo as regras da edição, da distribuição e da comercialização dominantes (e pouco existe o que não cabe nesta generalização), os livros são feitos para resultarem numa feira, e não é por ela não ser montada nas barracas da Avenida dos Aliados que se registará a sua falta de comparência. De Norte a Sul do país, na pequena faixa litoral por onde ainda circulam livros e pessoas, o estado de feira não conhece tréguas, a festa é todos os dias e os saldos são permanentes: nas cadeias de livrarias, nas estações de metro, em lugares de passagem. Quem é que ainda se lembra de que existe uma lei chamada do "preço fixo", aplicável aos livros nos seus primeiros dezoito meses de vida?
A lei presumia uma vida longa para os livros, mas estes entraram em ritmo acelerado e vida curta, e a lei foi revogada pelo hábito e pela condição pragmática: o que o legislador classifica como livros "novos", a lei do mercado decreta como velharias que não valem o espaço que ocupam e são expulsas em alta rotação. Chorar por uma Feira do Livro que não terá lugar é um gesto cândido de quem não deu pelo facto de que há feiras por todo o lado e todo o ano, e pensa que esse acontecimento – tão sensível aos fenómenos meteorológicos como uma flor de estufa: não floresce com demasiado calor e perece com a chuva – anuncia a Primavera da Cultura, cujos produtos são postos ao alcance de toda a gente. Felizes os crentes desta religião civil do livro, a quem é poupado o espectáculo ora pindérico ora de guerra civil, onde os mais brutos conquistaram o território e os mais delicados andam a mato. Esta metáfora da guerra literaliza-se um pouco na própria dimensão dos livros: em Portugal, eles são cada vez maiores, têm uma dimensão demagógica, ameaçadora, para expulsarem a concorrência.
Nas livrarias, parecem tanques de guerra estacionados numa garagem para Smarts; nas bibliotecas pessoais parecem calhamaços reluzentes fabricados em acordo secreto com as estantes da Ikea. Neste domínio, onde se usava repetir que "o livro não é um produto como os outros", não é esse o único castigo auto-infligido pelos "profissionais do sector". Confrontados com a lógica implacável do curto prazo, entraram no jogo e aplicaram-se activamente a encurtá-lo ainda mais; a produzir livros para consumidores ocasionais que, mal lêem o livro, vão imediatamente vendê-lo a uma livraria de segunda mão, o que multiplica enormemente o número de exemplares no mercado. Uma crítica da economia do livro mostraria que grande parte dos produtores contribuíram muito para retirar valor ao seu produto, para degradar a sua mercadoria, destinando-a a uma feira permanente. Aquilo que deveria ser um segundo mercado, o das sobras, é hoje o mercado principal. Os livros circulam por todo o lado – em feiras e entrepostos que dão pelo nome de livrarias – como produtos que sobram. Os que não são produzidos para sobrar, muitas vezes nem chegam a entrar lá. Uns são os excedentes, outros são os supranumerários. Que, perante isto, haja ainda quem não conceba que se possa falar de livros sem ser para proclamar as suas virtudes e a sua utilidade cultural e social, é prova de que há sempre últimos redutos para gente de muita fé.

- António Guerreiro
in Ípsilon (26.04.2013)

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