sexta-feira, abril 19, 2013


Entre a aurora e a noite está a história
universal.

Jorge Luis Borges

É inútil que durmas se já não achas
no sono esse lado para onde te viras
quando a ausência suspira,
e procuras assim no próprio sangue
algum corpo doce e clandestino
que te ampare a cabeça. Ficou-te presa
a coroa, e pesa terrivelmente. Solta
um bando de ideias que em quaisquer
ruídos se afiam e, já baloiçado de
desmesura
, desces o estore e deixas
a claridade fazer as limpezas.

O amanhecer rompe com os seus ritos
impiedosos como formigas sobre um
grilo inerte
. Com a barba, o rosto
inteiro por fazer, trazes já semanas
sem cortar a vista no espelho. Levantas
as roupas mudas do chão e tomas balanço
antes de caíres no vento. Uma espécie
de fé, essa cabeça baixa de quem faz
seu um destino qualquer, leva fundo
as mãos nos bolsos e acha dons.
Como essa frieza terna quando as ruas
te cansaram já e achas certa graça
só de encher os olhos de gente,
apalpar-lhes de leve as intimidades.

Pontual como os desesperados, entras
na pequena e miserável capela atulhada
de santos em cacos e ilustrações beatas
que, de sucessivos restauros, saíram
com bigodinhos hitlerianos e uns bons
cornos. Os anjos, já desmoralizados,
catam piolhos uns aos outros aos pés
do altar onde as aranhas conduzem
os seus sacrifícios. Fazes o sinal
da cruz e segues com estranhos gestos
inventados, acendes um cigarro e
ajoelhas entre as cinzas, comovido,
ainda sem teres motivo. A luz
entra também cheia de cuidados, pisa
mil articulações de sombra e, aos poucos,
desprende uma recordação, vendo-a
desabrochar e morrer vezes sem conta.

Nas praças, nos largos, nos parques onde
a flauta do pássaro azulado anuncia
frágeis recaídas
, as crianças ladram
aos cães, mordem turistas e com a ajuda
de uma pedra causam desastres magníficos.
Correm e escondem-se, lavam as mãos
com cuspo e só muitos anos
mais tarde escutam a balada do remorso
quando, certa tarde, a cadência da chuva
rapta o embale do sangue  e lhes
enche os rastros ébrios entre ruelas
ofegantes. Esse ar dos tristes sacanas
alinhados, como presos, indo pela berma
dos antigos caminhos. Uma banda de
sopro, lábios melodiosos nesse ritmo
coxo que vê a noite arredondar a saia.

No pequeno quartel que tem hasteada
a bandeira do vício, um balcão
altíssimo condena-vos a ficar de pé.
Tiras um número e entras de manso
na conversa bêbeda das velhas gárgulas.
O peso de um céu inútil resvala enfim
desses ombros cansados para as mãos,
e cada gesto que se segue tem a doçura
de uma admirável insubordinação.

Sem comentários: