sexta-feira, abril 12, 2013


A TEORIA DAS CATÁSTROFES

Naquele tempo, que agora nos parece tão frívolo, há precisamente trinta anos, Jean Baudrillard, um génio da alegoria com alcance conceptual, desenvolveu a sua noção de obscenidade (“a obscenidade começa (...) quando tudo se torna de uma transparência e de uma visibilidade imediata, quando tudo é submetido à luz crua e inexorável da informação e da comunicação”), rematando com a cena lacónica de um homem que, em plena orgia, murmura ao ouvido de uma mulher: “ What are you doing after the orgy?”. A orgia total - do sexual, do político, do cultural, do racional, da crítica – tornara-se entediante e provocava uma enorme impaciência. Daí a pergunta, ainda que murmurada, acerca do “depois”. Quando tudo se começa a exorcizar no seu excesso orgíaco e se dá uma desregulação por hipertelia, isto é, quando as coisas já estão para além dos seus próprios fins e se anulam por saturação, Baudrillard, perspicaz, percebeu que o crescimento era, afinal, sinónimo de excrecência. Todos os sistemas, e em primeiro lugar o sistema financeiro, davam sinais de ter chegado a um estado de obesidade, de “gravidez diabólica”, como disse Susan Sontag do cancro. Baudrillard, que transcreveu com grande inteligência e sensibilidade esta música silenciosa, preferiu sempre pensar as transformações contemporâneas em termos de catástrofe e não de crise. Ele sabia que a realidade só pode ser compreendida a partir dos seus extremos, e que a chamada crise só serve para ocultá-la. É hoje evidente que a palavra “crise”, à qual se retirou toda a dimensão de conceito, se tornou um empecilho para percebermos o que se passa. A ideia de crise supõe um disfuncionamento do sistema, mas em que há a perspectiva de uma solução para o superar. Finda a crise, tudo volta à anterior normalidade. Deixamos, porém, de poder falar em crise e devemos começar a falar em catástrofe quando o sistema se ultrapassa a si mesmo e já não encontra nenhuma solução para voltar a funcionar. A crise explica-se por uma cadeia lógica de causas; a catástrofe dá-se quando já não existe relação lógica, directa e proporcional entre as causas e os efeitos. A catástrofe , bem o sabemos, provoca muito medo, já que se refere habitualmente a algo demasiado grande, devastador e incontrolável. Mas novos horizontes se abririam se ela fosse integrada no vocabulário político, tal como foi integrada na Matemática por René Thom, o autor da teoria das catástrofes, que elaborou um modelo para a análise das transições bruscas, das descontinuidades e das súbitas mudanças qualitativas. Assim, em vez de sermos incitados, pela “catástrofe”, a começar algo de novo, continuamos, pela “crise”, estupidamente imobilizados a olhar para o que nos é imposto como “horizonte inultrapassável do nosso tempo” (foi assim que Sartre designou o comunismo). Se, como já foi reconhecido, é nalgumas obras literárias e filosóficas da segunda e da terceira décadas do século passado que encontramos ainda a chave da condição “espiritual” (usando uma palavra muito típica de então) da época em que vivemos, é porque elas foram escritas por quem soube integrar a catástrofe no seu pensamento ou, até, adoptar um modo de pensar por catástrofes, típico de um ambiente com um tão alto teor de actividade intelectual que era possível conceber uma “barbárie positiva”. É claro que precisamos da catástrofe e que andamos a perder tempo com a música pimba da crise. 

- António Guerreiro
in Ípsilon (12.04.2013)

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