sexta-feira, abril 05, 2013


A NOVA ORDEM NARRATIVA

Na semana passada, graças a um ex-primeiro ministro que regressou para contar as suas fábulas, com as quais tentou relativizar ou destituir de verosimilhança as fábulas engendradas na sua ausência, até os mais ingénuos perceberam que vivemos sob o domínio do imperialismo narrativo, já há muito tempo identificado pelos investigadores em ciências sociais, que falaram mesmo de um “narrative turn”, de uma viragem narrativa nas técnicas de comunicação, de controle e de poder. Segundo essa vulgata, todos os discursos – político, ideológico ou cultural – devem, para ter sucesso, adoptar uma forma narrativa. O storytelling management tornou-se um instrumento poderoso da mentira de Estado e do controle das opiniões. O jornalismo, a quem deveria caber a denúncia das máquinas narrativas, tornou-se ele próprio narrativo. Quem está familiarizado com o jargão dos profissionais do ramo, sabe que “contar uma história” é a tarefa exigida a qualquer repórter. Jornalista competente é aquele que descobre “boas histórias”. Por isso é que é hoje impossível ler ou ver uma reportagem sobre a pobreza, por exemplo: o que é apresentado ao leitor ou ao espectador é um elenco de pessoas pobres, transformadas em personagens de uma narrativa e fotografadas ou filmadas como exemplares de uma espécie. Na reportagem de televisão, este método foi elevado à caricatura. Esta nova ordem narrativa, ao serviço de uma economia mimética e ficcional, apropria-se do saber e dos desejos dos indivíduos, orienta os fluxos de emoções, exactamente como as técnicas de propaganda da primeira metade do século passado. Ao serviço desta formatação narrativa e da sua difusão está um processo de encenação. Em 1966, Roland Barthes publicou na revista Communications um célebre artigo, Introduction à l’analyse structurale du récit, que se iniciava desta maneira: “Inumeráveis são as narrativas do mundo”. Barthes analisava aí a narrativa como uma das grandes categorias do conhecimento que utilizamos para compreender e ordenar o mundo, mas a sua “narratologia” faculta um saber lúcido – científico, apto a proteger-nos dos cantos da sereia – sobre os arquétipos e processos narrativos. Quase na mesma altura, Althusser resumia a sua concepção do materialismo dizendo que este consistia em “não mais contar histórias” (a si mesmo e aos outros). Quase simultaneamente, o “nouveau roman” mostrava conhecer tão bem as convenções da narrativa que se aplicou a destruí-las. E, a partir dele, qualquer texto literário parecia não ousar contar uma história sem dizer implicitamente: “Eu sou um texto que fabrica uma história e incorporo no meu interior, transmitindo-a ao leitor, a consciência dessa fabricação”. Quando o “narrative turn” também chegou à literatura e uma parte considerável dos romances que inundam hoje as livrarias se aliaram às técnicas de propaganda do storytteling, servindo os mesmos fins, o romancista passou a investir todo o seu talento de storyteller na missão de contar histórias. Daí a preocupação com a técnica de “agarrar” o leitor no início (veja-se o incipit sempre espertalhaço deste tipo de romances), operação que pode ter sucesso com os seguidores acríticos da nova ordem narrativa – nas suas manifestações políticas, jornalísticas, publicitárias e literárias – mas não com os leitores que não querem que ninguém os agarre porque lêem para serem livres.

- António Guerreiro
in Ípsilon (05.04.2013)

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