A MULTIDÃO SONÂMBULA
[Texto de António Guerreiro]
Um olhar atento e instruído no aspecto coreográfico e gestual de manifestações recentes, como a de 2 de Março, em que uma multidão – não uma classe – se mostra na rua, enquanto entidade politicamente qualificada (coincidindo com um dos significados da palavra “povo”), reparará certamente que toda aquela gente parece ter perdido os gestos que outrora serviram para exibir um puro meio (e é esse o sentido primeiro e mais próprio da política, como nos ensinou Hannah Arendt) e avança e entoa frases como se fosse sonâmbula. Dir-se-ia que está a reaprender os gestos que já esqueceu, ou de que foi espoliada, ou que nunca adquiriu. Onde é que esses gestos ganharam o máximo de intensidade expressiva? Na revolução e na revolta. A primeira consiste num conjunto de acções que visam mudar, no tempo histórico, uma determinada ordem simbólica e uma situação política, social e económica; a revolta, pelo contrário, não se cumpre segundo uma táctica e uma estratégia, não considera as relações de causa e efeito, não prevê as consequências e irrompe como uma suspensão do tempo histórico. Deste modo, “que se lixe a Troika”, poderia surgir como um gesto passível de se traduzir em revolta ou insurreição, que é uma das suas variantes. Mas, como sabemos, é um gesto mais tímido de protesto. Quem o vê como algo completamente inconsequente e irrealista porque esquece deliberadamente o depois, o que viria a seguir à realização do acto que tal injunção verbal – “Que se lixe a Troika” – advoga como imperativo, esquece completamente que um dos gestos característicos do imaginário de Esquerda consiste em recusar os dados. Assim o faz porque considera que estes não são deduções obrigatórias da própria realidade, mas decorrem de um quadro ideologicamente construído, no interior do qual as questões são colocadas e os objectivos definidos, ficando todo o pensamento refém de esquemas e “clichés”. Dito de outra maneira: trata- se de recusar não tanto os próprios dados, mas os pressupostos a partir dos quais eles foram produzidos. “Que se lixe a Troika” é uma recusa onde está implícita a convicção de que é possível e necessário fazer aparecer outras características da mesma realidade e produzir outros dados. No fundo, este gesto poderia muito bem reafirmar o que uma vez escreveu o austríaco Paul Watzlawick, um grande nome da teoria da comunicação: “quando o único utensílio conhecido é o martelo, todos os problemas são considerados como pregos”. Na sua expressão mais actual, que é a da política em que vivemos, este martelar incessante é uma máquina negativa que só produz o nada a partir do nada. Ora, porque não é fácil recuperar ou aprender os gestos, os manifestantes apoderaram-se novamente da “Grândola”. É uma citação evidente, através da qual uma imagem do passado entra em constelação com o presente. Mas saberá, quem entoa a canção, apreender o que é absolutamente inédito na actual situação, ou estará o seu gesto, como parece, preso a um encanto mítico, a uma cegueira que impede de estar à altura das exigências do nosso tempo? Em A Educação Sentimental, Flaubert mostra como os revolucionários de 1848 deixaram escapar a ocasião presente, imitando até ao ridículo os gestos e a linguagem dos seus antecessores de 1789.
1 comentário:
Muito ,muito interessante.
Obrigado!
Abraço
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