terça-feira, fevereiro 26, 2013

Aspiração


1

Sombras do dia branco
contra meus olhos. Eu não vejo
nada senão o branco:
a hora em branco, a alma
desafeiçoada da ânsia e da hora.

Brancura de águas mortas,
hora branca, cegueira dos olhos abertos.
Esfrega a tua pedra de lume, arde, memória,
contra a hora e a sua ressaca.
Memória, chama nadadora.


2

Desafeiçoado do corpo, desafeiçoado
da ânsia, volto à ânsia, volto
à memória de teu corpo. Volto.
E arde teu corpo na minha memória,
arde em teu corpo a minha memória.

Corpo de um Deus que foi corpo abrasado,
Deus que foi corpo e foi corpo endeusado
e é hoje não mais do que memória
de um corpo desafeiçoado de outro corpo:
teu corpo é a memória dos meus ossos.


3

Sombra do sol Solombra ceifeira
cega meus mananciais macilentos
o nu desnuda ceifa a ânsia
apaga o ânimo desanimado

Mas a memória desmembrada nada
desde as nascentes do seu nada
os mananciais do seu nascimento
nada contra corrente e mandamento

nada contra o nada
                                   Ardor da água
língua de fogo fosforesce a água
Pentecostes palavra sem palavras

Sentido sem sentido não pensado
pensar que transfigura a memória
O resto é um feixe de centelhas

- Octavio Paz

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