terça-feira, setembro 04, 2012

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O acaso põe-me diante dos olhos uma pena tricolor e imóvel
e com ela nenhuma revelação, mudança de agulha, acalmia,
nenhuma ideia de norte ou sul, queda de água sem morte,
Beco do Quebra-Costas, infância ou aspiração que recordar.
A pena é uma pena e nem isso, analfabeta e burra,
como o livro que a carrega, os pássaros, os leitores.
A morte deve ter sempre os olhos na lama, as estrelas
são uma pretensão que não faz arder a retina, um logro
a transbordar de um saco com marrecos, bodes, anões,
pontas de sílex, beterrabas, compêndios & cavilhas,
um saco de promessas pequenas, jugo do lavrador.
O vinho deve ser tinto e forte e fresco, para sujar
a boca até aos ossos e digerir o bolo de indecências
que fermentou por dentro desta barrica de medos e suores,
demasiado minha para ser minha, demasiado baça,
espécie de serradura compactada, embebida em merda.
Deve passar um cão, sem significado algum,
em abono da cinemática e dos cus nas cadeiras,
como devem haver ruídos de fundo a indiciar um local,
mesmo que não tenha placa e nele só se morra
da mesmíssima maneira que aqui só se vive,
porque ambas as coisas poderiam ser substituídas
por sevilhanas, castanholas, peinetas
e outros artefactos com que adiar as horas.
A morte, de novo, deve ser discreta, muda, muar e hadicapée,
pôr-se de joelhos para rezar em pontas a jota da codícia
do seu próprio ardil, andar de luto e só rasar as águas,
digo vagas mansas de crude e Massamá.
A Besta, numa pequena aparição mal paga, deve ser um rosto
desdentado e cru, como se criado em caixas de cartão,
ao abrigo de tudo menos das suas unhas e um malho
nas costas ao tentar sumir-se pelas gretas do mundo.
A pena, claro, deve ser tricolor, para que persista a palavra
alegria, parangónica e fátua e biodegradável,
como convém aos maquinismos néscios que produzem
carcaças e cilícios para os padres. A mota:
a mota, que também ia só a passar, deve peidar-se
icontinentemente para que, aquém ou além do horizonte,
existam cowboys e a juventude, não fosse alguém morrer
de desespero ou sêde, sem um cantil de ervas maceradas
com fungos, forrado a pied de poule ou cabedal.
E eu, que não devia estar aqui, devo teimar na madeixa
asa de corvo ou alistar-me num tanque militar
com que impôr o Descartes aos afegãos?
O vinho deve ser tinto e forte e fresco,
para sujar a boca até aos ossos.

- Miguel Martins
(inédito)

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