sexta-feira, agosto 31, 2012

Filosofia numa “casca de noz”

[Texto de David Teles Pereira, publicado no Ípsilon de 31 de Agosto]

Falando de filosofia, as Edições 70 têm nos últimos anos procurado manter um catálogo particularmente significativo de obras deste tema, bastante mais volumoso e variado que o de qualquer outra editora nas mesmas condições. Entre os vários livros que o compõem encontramos alguns textos canónicos da história da filosofia, obras de sistematização de temas ou do pensamento de autores e, também, aqueles que aqui mais nos interessam, obras de introdução à filosofia.
Nestes últimos, um reconhecimento já tardio é devido a “As Andanças de Cândido”, de Miguel Nogueira de Brito, publicado em 2009. Construído como um manual universitário de introdução ao pensamento político contemporâneo, é, apesar de algumas lacunas reconhecidas pelo autor na sua introdução, uma excelente iniciação aos temas e autores que dominam a filosofia política do século XX, fortemente documentada nos textos dos autores abordados e abrangente no espectro político, pelo que não se perde numa visão indesejavelmente polémica deste ramo da filosofia. Já este ano, as Edições 70 lançaram “Grandes Livros de Filosofia” e “Uma Pequena História da Filosofia” de Nigel Warburton, professor da Open University e autor de uma série de obras de iniciação à história e pensamento filosófico.
O primeiro destes livros acompanha o leitor ao longo de 24 obras indispensáveis da pelo menos no juízo do autor britânico. O seu horizonte temporal é vasto – vai desde “A República” (c. 380 a.C.), de Platão, a “Uma Teoria da Justiça” (1972), de John Rawls –, apesar de metade das obras incluídas terem sido escritas entre finais do século XVII (“Ensaio Sobre o Entendimento Humano”, de John Locke, de 1689) e meados do século XIX (“Utilitarismo”, de John Stuart Mill, de 1861).
Se nos guiarmos pelas escolhas de Warburton, a escassez de grandes obras de filosofia é tal que foi necessário escolher mais do que uma obra de quatro dos autores – John Locke, David Hume, Immanuel Kant e John Stuart Mill –, ficando de fora, assim, alguns textos supostamente incapazes de concorrer com um bis de Hume ou de Stuart Mill, como “A Cidade de Deus”, de Santo Agostinho, “Fenomenologia do Espírito”, de Georg W. F. Hegel ou “O Ser e Tempo”, de Martin Heidegger. Aliás, no século XX, para além de Heidegger, ficam de fora as obras de Sigmund Freud, Bertrand Russell, Leo Strauss, Jürgen Habermas, Hannah Arendt, Michel Foucault, Jacques Derrida ou Judith Butler, entre outros. Não deixa também de ser sintomático o facto de Nigel Warburton ter optado por não incluir uma única obra escrita por uma mulher, mesmo tendo muito por onde escolher, que mais não seja no século XX.
Em “Uma Pequena História da Filosofia”, deparamo-nos com problemas de opção idênticos, embora em menor escala. Agora, em vez de 24 obras temos mais de cinquenta autores fundamentais da história da filosofia divididos por quarenta capítulos. Mesmo assim, há ausências difíceis de compreender, especialmente quando, mais uma vez, Kant e Locke têm o privilégio de aparecer a dobrar enquanto, aparentemente, Heidegger ou Edmund Husserl continuam a não merecer um capítulo.
Não é, contudo, entre as ausências e inclusões – sempre tributárias de uma visão subjectiva e discutível de quem escreve e de quem critica – que se encontra um dos principais problemas desta obra, mas sim na parcialidade e estreitamento que essas escolhas revelam. Deu-se o nome de “Uma Pequena História da Filosofia” (“A Little History of Philosophy” no original) a uma obra que faz pouco para o merecer. Apenas marginalmente se refere a autores que não pertencem à filosofia ocidental ou a autores da filosofia islâmica ou judaica com enorme influência e destaque na filosofia ocidental, como Maimónides, Avicena ou Averróis, os quais apenas são referidos de passagem e sem qualquer informação minimamente útil e enriquecedora sobre o seu pensamento.
Por outras palavras, trata-se de uma história da filosofia ocidental, orientada maioritariamente por um cânone anglo-saxónico. A subjectividade e a parcialidade que a construção de uma “antologia” de filósofos necessariamente implica acabam por justificar em parte estas escolhas orientadas pelo gosto do autor. Isto nota-se, por exemplo, na inclusão de Thomas Reid e George Berkeley deixando de fora Montesquieu. Nota-se, também, na autonomização dos capítulos relativos a Jeremy Bentham e Stuart Mill quando isso poderia ter deixado livre um capítulo para Max Weber e Émile Durkheim ou na restrição do pensamento socialista do século XIX a Karl Marx quando poderia muito bem ter repartido este capítulo com outros autores, recurso que Nigel Warburton utiliza noutros casos, como no capítulo 16 dividido entre Voltaire e Leibniz, aliás uma das opções mais interessantes e bem conseguidas deste livro. Esta última alternativa faria ainda mais sentido se tivermos em conta que os pensadores marxistas do século XX estão ausentes, bem como qualquer autor da Escola de Frankfurt, como Benjamin, Adorno ou Habermas. Tal como no livro deste autor anteriormente publicado pelas Edições 70, o destaque dado à filosofia de autoria feminina é pequeno, não aparecendo uma única pensadora da terceira vaga feminista. Contudo, neste aspecto, “Uma Pequena História da Filosofia” é menos permeável, uma vez que inclui Simone de Beauvoir, apesar de parecer fazê-lo mais como “uma mulher bela e muito inteligente” (p. 195) que frequentemente acompanhava Sartre, “um homem com olhos esbugalhados (…) a fumar cachimbo e a escrever num caderno” (idem) no café Les Deux Magots, do que como ponto fulcral da filosofia feminista.
Outras opções, contudo, nem no gosto pessoal do autor podem encontrar justificação. A filosofia da Idade Média é basicamente concentrada em quatro autores, sendo que para isso estamos a considerar Agostinho como um autor medieval apesar de, cronologicamente, ele não o ser (nasce em 354 e morre em 430). Importa também reparar que entre Boécio e Anselmo há um espaço de 500 anos em que a história da filosofia, segundo as opções de Warburton, não aconteceu. Isidoro de Sevilha ou o Papa Gregório I poderiam ter ajudado a preencher esta lacuna, tal como Al-Farabi. E, já que a inclusão de Albert Camus atesta o inclusivo que é o conceito de filosofia de Warburton, porque não incluir também Dante nos autores medievais?
Mais lacunar ainda é o período do Humanismo e Renascimento. De entre as escolhas de Warburton, apenas o capítulo de Maquiavel se pode considerar, com propriedade, de esta época. Ficam de fora os autores da Escola de Salamanca, o que poderia ter garantido uma pequena referência à filosofia portuguesa, bem como Jean Bodin – que seria um excelente contraponto a Maquiavel –, Hugo Grócio ou alguns dos autores da Reforma Protestante cuja ausência numa escolha tão tendencialmente anglo-saxónica é difícil de compreender.
Basta ler o prefácio ou a recepção crítica que este livro tem recebido para identificar facilmente o elogio mais comum a “Uma Pequena História da Filosofia”: a simplicidade com que Nigel Warburton consegue explicar as ideias mais complexas e exigentes da filosofia ocidental e a sua prosa coloquial e eficiente. O primeiro capítulo de Kant ou o de John Rawls são exemplos do melhor que esta cooperação entre desadorno da escrita e densidade dos temas pode oferecer ao leitor. Contudo, o esforço por manter o nível coloquial e por mostrar ao leitor alguns pormenores mais triviais da vida dos filósofos sobre os quais escreve, tem como consequência pouco feliz o esboço de alguns retratos caricaturais. Os parágrafos que gasta a contar que Hobbes “fazia grandes caminhadas todas as manhãs e corria pelas colinas até ficar sem fôlego” (p. 71), poderiam ter sido melhor empregues a explicar o quanto um epicurismo de feição moderna influenciou determinantemente o seu pensamento político ou, já que as trivialidades parecem ser importantes, contar que um dos filósofos que mais convincentemente retirou consequências políticas do terror que a morte em nós provoca, nasceu prematuro quando a sua mãe teve notícias da aproximação da Armada Invencível a Inglaterra. Outros exemplos são os capítulos dedicados aos dois grandes doutores da Igreja: Santo Agostinho e São Tomás de Aquino. Quando Warburton escreve que “os filósofos medievais aprendiam com os antigos filósofos gregos, como Platão e Aristóteles” (p. 49), são vários os níveis em que o autor confere uma visão redutora do pensamento político medieval. Falha, principalmente, em mostrar ao leitor quão polémica e complexa foi a recepção do pensamento de Platão e, principalmente, do de Aristóteles durante o milénio que durou a Idade Média – as condenações na Universidade de Paris entre 1210 e 1277, fundamentais na evolução do pensamento medieval, passam ao lado desta obra. O papel e a originalidade da teologia política medieval mal se notam nestes dois capítulos, que poderiam ter servido para mostrar a ruptura que os autores tratados nos capítulos subsequentes representaram para a história do pensamento filosófico – Maquiavel, Hobbes, Descartes e Espinosa. O capítulo sobre Hannah Arendt é outro dos menos conseguidos. Termina com uma afirmação que parece surgir do nada: “Karl Popper foi um intelectual vienense que teve a sorte de escapar ao Holocausto e aos comboios muito pontuais de Eichmann” (p. 211). Porquê Popper no texto de Arendt? Porque o capítulo seguinte é sobre Popper? Terá Popper sido o único filósofo a escapar ao terror nazi? Então e Theodor Adorno ou Kurt Gödel, só para dar dois exemplos? E, já agora, porque é que Hannah Arendt é apenas “uma judia alemã que emigrara para os Estados Unidos” (p. 209), quando escapou da Alemanha e, depois, de França à perseguição do nazismo e Karl Popper “teve a sorte de escapar ao Holocausto”, quando emigrou em 1937 para a Nova Zelândia? Por outro lado, centrar a obra filosófica de Arendt nas reportagens que deram origem a “Eichmann em Jerusalém” é absolutamente redutor, principalmente quando se perde tempo a escrever que Arendt e Heidegger “foram amantes, apesar de ela ter apenas 18 anos de idade e de ele ser casado” (idem) e a resumir de forma completamente caricatural o livro “Ser e Tempo” do autor alemão: “Heidegger estava ocupado a escrever Ser e Tempo, um livro incrivelmente difícil que alguns pensam ser um grande contributo para a filosofia e outros consideram ser um texto deliberadamente obscuro” (idem). Se tivesse escrito um capítulo sobre Heidegger talvez Nigel Warburton pudesse ter resolvido essa questão de uma vez por todas, para felicidade de nós, seus leitores.
Isto não afecta, em parte, o mérito e importância que este livro pode ter enquanto porta de entrada no pensamento filosófico para adolescentes e jovens adultos. A este propósito recomenda-se a leitura do prefácio de Desidério Murcho, que de forma simples e exemplificativa destaca o papel fulcral que estes livros introdutórios têm na formação das estruturas do conhecimento filosófico de cada um. No estado em que o ensino da filosofia vai apodrecendo nas escolas secundárias de Portugal, a disponibilização destes livros em tradução portuguesa é quase uma missão humanitária. Mas, neste estado de ensino da filosofia, também é de temer que já nem haja grande interesse em chegar sequer a estes livros. Ainda assim, seja para um público adolescente ou para adultos que resolvem ler Hobbes em plena crise de meia-idade, o mais importante é que existam, disponíveis, livros como este que tornam acessível os pensamentos mais complexo, mesmo que apenas a um nível introdutório. Claro que este não é, de todo, o melhor livro para tal e talvez seja já um sintoma terrível uma obra introdutória como a “História do Pensamento Ocidental” (Diversos, 2005), de Bertrand Russel, ser considerada demasiado complexa, ao ponto de serem necessárias versões mais acessíveis.


Nigel Warburton, Uma Pequena História da Filosofia, Edições 70, 2012.
Nota: três estrelas e meia.

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