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Na Tabacaria, Pessoa diz:Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.
Agostinho da Silva:
Quando alguma coisa é alguma coisa, deixa logo de ser as outras todas, e isso é uma pena. O que é preciso é ser tudo ao mesmo tempo.
Ora bem: a inteligência é, precisamente, a capacidade de, em simultâneo, se abarcar tudo, todos os espaços e todos os tempos, passados, presentes, futuros, reais ou imaginários, desejáveis ou indesejáveis, realizáveis ou não, recorrendo a tantos campos do saber quantos possível. Já a estupidez, ao inverso, é a circunscrição ou o privilegiamento de uma qualquer dessas dimensões, normalmente as mais próximas.
Assim, regra geral, uma particular apetência para lidar com aquilo a que comumente se chama a realidade - imediata, visível - é um evidente sinal de estupidez, porque acarreta menosprezo pelas demais dimensões abarcáveis pela inteligência. Estar inteiramente num sítio invalida que se esteja em muitíssimos outros.
Claro está: a esmagadora maioria das pessoas é estúpida, ao nível da animalidade mais rasa.
Mas, não bastando a alguns essa dimensão reptiliana, eis que ainda atrofiam essa matéria mínima da dita realidade para dimensões paroquiais ou domésticas, cuja importância inflacionam, por modo a se terem na conta de Gullivers.
(O conceito mesmo de vida privada e a sua prática são emanações da cretinice. Evidentemente, o mesmo há a dizer da propriedade privada. Ambas se opõem à liberdade.)
Em última instância, a única dimensão que lhes interessa é o Eu e, ainda que minúsculo e pouco denso, nem com isso conseguem entender-se.
A estupidez é responsável por todos os males do mundo, o maior dos quais o ateísmo, essa cristalização da insensibilidade, oposta à liberdade, a grande dádiva divina, de que o patamar supremo é a liberdade de obedecer a Deus. Porque, recorrendo, uma vez mais, a Pessoa:
Nenhum homem inferior pode ter um mestre, porque o mestre não tem nele nada de que o ser. É por esta razão que os temperamentos definidos e fortes são facilmente hipnotizáveis, que os homens normais o são com relativa facilidade, mas não são hipnotizáveis os idiotas, os imbecis, os fracos e os incoerentes. Ser forte é ser capaz de sentir.
- Miguel Martins
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