até quando vale dar uma de inteligente
para quê completar um pensamento.
É preciso lançar ao ar as ideias!
A desordem também tem o seu encanto
um morcego luta com o sol:
a poesia não incomoda ninguém
e a fúcsia parece uma bailarina.
A tempestade se não é sublime aborrece
estou farto de deus e do demónio
quanto custa esse par de calças?
O galã livra-se da sua noiva
nada mais antipático que o céu
ao orgulho enfiam-lhe uns chinelos:
nunca discute a alma que se estima.
E a fúcsia parece uma bailarina.
Quem embarca num violino naufraga
a donzela casa-se com um velho
pobre gente não sabe o que diz
com o amor não nos fazemos rogados:
em vez de leite a ele saía sangue
só por gozo é que as aves cantam
e a fúcsia parece uma bailarina.
Uma noite quis-me suicidar
o rouxinol ri-se de si mesmo
a perfeição é um tonel sem fundo
tudo o que é transparente seduz-nos:
espirrar é o maior dos prazeres
e a fúcsia parece uma bailarina.
Já não há nenhuma miúda por violar
na sinceridade está o perigo
eu ganho a vida aos pontapés
entre o peito e as costas há um abismo.
É preciso deixar morrer o moribundo:
a minha catedral é a casa-de-banho
e a fúcsia parece uma bailarina
Leva-se presunto ao domicílio
pode ver-se as horas numa flor?
vende-se crucifixo por uma pechincha
a ancianidade também tem as suas vantagens
os funerais só deixam dúvidas:
Júpiter ejacula sobre Leda,
e a fúcsia parece uma bailarina.
Seja como for vivemos na selva
não sentes o murmúrio das folhas?
por que não dizes que estou a sonhar
o que eu digo deve ser feito
parece-me que tenho razão
também eu sou um deus à minha maneira
um criador que não produz nada:
eu dedico-me ao bocejo full time
e a fúcsia parece uma bailarina.
- Nicanor Parra
Sem comentários:
Enviar um comentário