As almas também precisam
de levar porrada.
Céline
Deploráveis buracos onde atiram
homens com os seus sentimentos, silêncios
vivos e os venenos de que se servem.
Sem mais referências,
um grilo lembra-nos onde fica a porta,
o fósforo de um ou outro relâmpago
risca a distância e um punhado de estrelas
lançadas bem alto dá-nos uma ideia
da enormidade desta merda.
Junto ao alvorecer restam só corpos meio
bebidos a abrir rastos onde a claridade
se espreguiça. A voz perdida do vento
cola-se a nós, empurra, exaspera-nos.
Os pássaros acordam sem paciência e gritam
aos frutos que amadureçam duma vez.
A custo distingo já o que se passa.
Absurdas de contraste, as ruas parecem-me
um pouco estúpidas, limitadas, o que lhes
resta de delírio ainda somos nós.
Vultos fabulosos, alheados, sonâmbulos,
num ritmo de quebras e sobressaltos.
Ouço distraidamente os meus passos,
essa soma que me perde, num vago
andar feroz e quase inútil. Desfaço-me
do sonho descendo a lugares
onde não entra mais nenhuma ficção,
nenhum efeito de encenação. Uma luz
que pouco se esforça para nos distinguir,
dá-nos a mesma idade e torna fáceis
as confusões do desejo. O mais fundo
da carne expõe-se à superfície.
Agitados, fervorosos, a língua a afiar
as garras contra o céu da boca. Em voz baixa,
entregues a pragas e preces, frases
tremidas acompanham gestos de uma
precisão dolorosa, num bailado soturno,
repetitivo, desolador.
Em quase todos os versos degredado,
não me afino, sigo à distância e memorizo
as notas, destruindo a ordem. E toco
para mais ninguém, enquanto deixo
que a fome se alimente das outras dores.
Olhando as mãos, escutando o tempo
enquanto o cigarro deita a cabeça de lado
e sente esse cheiro triste nos meus dedos.
Menos que uma lembrança, uma afectação.
Não me chego muito, não me faço
a ninguém. Se não baixo os olhos, também
não me explico ou desculpo, não conto
estórias, não sei falar. Se me levanto, pago
e desapareço. Sigo um pensamento
contínuo meses a fio, não me interrompo.
Dou por mim esvaziado atrás de um
sorriso rasgado de violência.
Com a alma tonta de dor saio por aí
à espera que me façam descer, que me
cubram de porrada.
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